Mercedes Salisachs: “Entre la Sombra y la Luz”

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Mercedes Salisachs: “Entre la Sombra y la Luz” Ediciones B. Barcelona 2007. 404 pgs.

     Assaltava-me uma dúvida. Por isso, antes de rascunhar estas linhas, revisei os comentários que fui escrevendo nos anos passados, sobre vários livros de Mercedes Salisachs. Minha suspeita confirmou-se: todos redigidos em espanhol. Será possível? Chequei na Internet e comprovei que não consta nenhuma tradução das suas obras ao português. Poderia ser uma justificativa, mas senti-me incomodado. E decidi alinhavar este comentário em português, mesmo sabendo que se acaba motivando alguém a ler esta notável escritora, terá de aventurar-se a fazê-lo em espanhol. Um espanhol claro, simples na forma, elegante e sem rebuscamentos, que conduz à densidade do fundo, do conteúdo, terreno onde Salisachs mostra todas suas capacidades literárias. Vão, pois, em português as minhas reflexões –esse é sempre o resultado de ler esta autora- com livre tradução das citações que se recolhem.

     Impossível deixar de dizer que Mercedes Salisachs escreve este romance com quase 90 anos de idade. Deve se advertir que há muitos outros anteriores, e também vários posteriores. A familiaridade com que a escritora trata os temas transcendentes –alma, sofrimento, morte, o além- assim como as profundezas do ser humano, virtudes e paixões, não decorre apenas da idade desde a qual escreve. É uma constante na sua trajetória literária.

     A generosidade, o amor, a doação, o esquecimento próprio, a magnanimidade e todo o cortejo de virtudes humanas, em permanente diálogo com a traição, a mentira, a infidelidade, o egoísmo. Digo diálogo e não oposição, porque o convívio nunca é violento, agressivo, um falso maniqueísmo entre o bem e o mal, entre as pessoas boas e as ruins, em que somos tentados a classificar os seres que nos rodeiam. “Os humanos estamos sempre doentes de egoísmos” –diz a protagonista do livro. O convívio das virtudes e dos vícios é a paciente terapêutica para ir vencendo a doença, a sempre frágil convalescença, a recuperação luminosa. E tudo com a clara consciência de que a doença –nossos defeitos e erros- tem impacto epidêmico, contagiam a saúde dos que nos rodeiam, fazem pior o mundo, geram o mal que, inconscientemente, costumamos atribuir ao destino, a forças ocultas ou mesmo a Deus. Assim o exprime um dos personagens numa prosa que é quase poesia “Logo saberás que as infrações que o homem comete, mesmo sendo pequenas, ficam no ar que os outros seres viventes respiram; e o contaminam de violência, de imperfeições. Não é o Criador quem envia essas calamidades. É o cúmulo de delitos que pairam na atmosfera e que não chegam a purificar-se, o que ameaça constantemente o vosso convívio na terra”.

     Juana Bernal, a protagonista, acaba de enviuvar. Sérgio, o marido falecido num acidente, famoso cirurgião, é o outro figurante que, no Vale dos Perdidos, vai aprendendo a se conhecer, a refletir nas coisas que desprezava em vida. Monólogos e diálogos em ambos os planos – Juana e os mortais, Sérgio e o Companheiro do Vale. É Juana refletindo: “Quando lhe dava a entender que em matéria de fé era uma verdadeira nulidade, que confundia costumes com dogmas, dizia que as minhas posturas já não estavam de moda. Não reparava que a religião nunca deve medir-se com os parâmetros do que está em voga, mas que é a coluna que sustenta todas as possíveis modas que acabam passando”. Sérgio também reflete: “Juana era um ser excepcional, alguém único, elaborado com um padrão que tinha se perdido nos vaivéns de uma civilização que tudo permitia e que confundia legalidade com o que sempre tinha sido considerado como delito”.

     Reflexões que se alcançam a posteriori, quando não há remédio. Um encantador exame de consciência montado em cima de uma fenomenologia de futuríveis – daquilo que poderia ter sido e não foi-, recurso no qual Mercedes Salisachs sempre demonstra uma destreza impar nos seus vários escritos.  “Tudo aquilo conduzia ao casal às regiões do abatimento mais incongruente. Aquelas bobagens tinham à vezes a força de um furacão: arrastavam sonhos, destroçavam entusiasmos e, naturalmente, transformavam as emoções em violências coléricas.”

     A familiaridade que a escritora demonstra para com a dimensão transcendente é fruto da fé em Deus que confessa com clareza. Uma fé meditada, digerida, pensada e aceita. O Companheiro recrimina a Sérgio: “O único que fazias era confiar na tua sorte. Acreditavas na sorte como outros acreditam em Deus. Quando colocais Deus num canto, acabais aferrando-vos às superstições. O sal, o número treze, não passar em baixo da escada. E ler com fruição horóscopos que as revistas do coração inventam para contentar vossos anseios de conhecer esse futuro que somente Deus conhece (..) E tantas outras insensatezes que ajudam a maquiar a verdade para dar um sentido ao vazio da vossa ignorância”

     Conversas e solilóquios, todos de enorme riqueza, densos, que para o leitor se apresentam como uma sugestiva sinfonia, porque escuta os instrumentos ao uníssono. Não apenas os solistas, os protagonistas principais, mas também os secundários que Salisachs utiliza para destilar sabedoria. O pai de Juana é um deles: “Sem projetos nosso ser se paralisa. Deve lembrar isso sempre, Juana. A existência está feita de momentos. Momentos que cambiam, mas são esses momentos os que nos conduzem à totalidade da vida. Por isso é preciso saber ordená-los e colocá-los no lugar adequado”. Eis um recado de permanente utilidade: a vida é a soma dos instantes, das oportunidades, do que fazemos ou deixamos de fazer; esperar pelo tempo propício, pelo momento único, é enganar-se. Estar à espera das condições ótimas de temperatura e pressão, é deixar passar o tempo da vida, que deve ser tecida com os instantes que nos chegam – bons e maus, agradáveis e incômodos. Vem à memória aquela frase de Guimarães Rosa quando fala do “país de carne, sangue e mil e tantas misérias”. Isso é a vida, a que temos de viver e transformar, dando o nosso melhor.

     Uma vida que é preciso integrar em unidade. Não há divisões possíveis, várias caras –ou vários chapéus para vestir, como hoje parece moda- de acordo com o cenário onde se atua. Bem o mostra a autora ao descreve o caráter de Sérgio, suas atitudes. A aparente competência profissional não sintoniza com as continuas desatenções e indiferenças domésticas, para com a família. Logo se comprova que essa dualidade é falsa, e que a fama e o prestígio do conhecido cirurgião ocultam uma ética que se decompõe, insustentável. A vida não e um teatro onde se representam diversos papeis, antagónicos, de mocinho e bandido. Um sempre absorve o outro, para o bem ou para o mal. Belíssimo ponto de reflexão para o nosso mundo que teima em “deixar de fora os problemas pessoais” ou de “ser profissional e não misturar os canais”. Somos misturados por natureza. Somos, fatalmente, felizmente, uma unidade. Não admitir isto, e guiar-se em consequência, é alimentar uma bomba relógio, colocar uma rolha num vulcão. A explosão e o desastre é questão de tempo.

     Ler Mercedes Salisachs, com a sua fenomenologia dos futuríveis, é pauta sólida para uma reflexão sobre a própria vida; para desarmar, enquanto é tempo, as bombas relógio que todos vamos armando, distraídos com a correria diária. Vale a pena tentar. Mesmo em espanhol.

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