Rifkin’s Festival.Woody Allen, as saudades do bom cinema…. e da transcendência

Pablo González Blasco Filmes 4 Comments

Diretor Woody AllenWallace Shawn, Gina Gershon, Elena AnayaSergi López,  Enrique ArceChristoph Waltz. USA- Espanha, 2020. 92 min

Já ouvi -talvez li- em algum lugar, que os filmes de Woody Allen são como o aniversário da avó. Chega todo ano, o bolo enfeitado com a marca registrada. Pode ser melhor ou pior, mas é garantido. E, nesta altura do campeonato, quando o nosso judeu do Brooklin de classe média (ele que diz isso, não eu) já chegou aos 85, não seria elegante faltar nesse aniversário. 

De modo que, todo ano, estamos lá na expectativa. E, convenhamos, por pior que seja o bolo, o confeiteiro tem muitas horas de voo, de modo que algo mediano por parte dele, vale o tempo a ser investido. Que aliás, nunca é muito, nada de grandes super produções -banquetes pantagruélicos…..Com a idade, é preciso comer menos, talvez de jeito mais sofisticado. Como dizia um amigo -e bem poderia tê-lo dito o próprio Woody- após uma certa idade, só com olhar para a comida, já engordas….Embora, concluía -meu amigo, não Allen- que, sendo honesto, a gente não somente olha…..mas come mesmo. 

A outra ideia que sempre está presente -no aniversário fílmico de Woody- é que as personagens são sempre… ele. Um alter ego completo. Isso sim, parece-me lembrar que foi ele quem disse como resposta a esse interrogante que é evidente. “Woody, mas as personagens parecem-se com você. Por que colocar outro atores?” – Ele desconversou -alter ego, é quase assunto freudiano, também do gosto do diretor- e saiu pela tangente: “ Não tenho já idade para interpretar todas as personagens que estão na minha cabeça”. Creio ter comentado isso, naquele filme que me impactou, Meia Noite em Paris, onde quis fazer as pazes -render quase um tributo- ao baixinho. 

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C. S. Lewis: “Cartas de um diabo a seu aprendiz”

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Thomas Nelson Brasil. Rio de Janeiro. 2017. 150 págs.

Leituras na Pandemia – 13

Ler C.S. Lewis é sempre um desafio. O contundente bom senso, permeado de fino humor britânico e de toneladas de cultura, requerem tempo para a digestão. A dificuldade não está nas ideias que o professor de Oxford coloca, mas na assimilação parcimoniosa, na degustação dos conceitos. Não se pode ler em diagonal, para ver “do que vai o assunto” porque o mais provável é perder o gosto que produz o elegante raciocínio. É preciso estar alerta para as subtilezas, porque Lewis é accessível mas não é simples. Foi isso que se percebeu no início da nossa tertúlia literária do mês: uma mistura de desconcerto e de surpresa.

As tais cartas do demônio sênior ao aprendiz, tem como pano de fundo o processo de conversão do próprio Lewis; daí que dedique o livro ao seu amigo -que foi instrumento nessa trajetória religiosa- J.R.R. Tolkien. As dúvidas que lhe cercaram e que teve de superar são a base do “coaching” do demônio velho para o novo. Por isso, os argumentos, quando saboreados, tem pegada, chegam fundo a cada um de nós que somos, “os pacientes” do tal demônio. O importante, diz o velho demônio, são os resultados, chegar lá, não importa os meios: “Você logo descobrirá que a justiça do Inferno é puramente realista e preocupa-se tão somente com os resultados. Traga-nos comida ou você mesmo virará nossa comida”. Qualquer meio está valendo se conseguimos “conquistar o paciente” para nossa causa: “Os demônios ficam igualmente satisfeitos com ambos os erros e saúdam um materialista ou um bruxo com o mesmo prazer”.

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O Anel de Giges: Um dilema ético sempre atual

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Eduardo Giannetti: “ O Anel de Giges”. Companhia das Letras São Paulo 2020. 313 págs.

Joaquin García- Huidobro: “El anillo de Giges. Una introducción a la tradición central de la ética”.  Ed Notas Universitarias. México. 2019. E- Book. 519 pgs

Por essas coincidências da vida, tropecei, em menos de um ano, três vezes com o anel de Giges e os desafios da ética.  Na verdade não foi com o anel -o que me colocaria numa saia justa- mas com a história relatada na República do Platão: Giges, um pastor, encontra um anel que o torna invisível. E daí, como ninguém o vê, apronta todas…

A primeira vez foi no livro já comentado sobre a Ética da Razão Cordial, onde a autora se pergunta: Continuas sendo justo quando ninguém te vê, quando tua debilidade não está exposta?

Pouco depois, apareceu em cima da mesa do meu consultório o livro de Gianetti. Um amigo, que tinha ouvido no rádio o comentário,  decidiu me dar de presente. Retoma-se a fábula: “Imagine um anel que faculte ao seu dono o privilégio de ficar invisível ao olhar alheio: ao simples girar do engaste no dedo a pessoa desaparece e, ao retorná-lo à posição normal, ela volta a ficar visível aos olhos de todos. O anel de Giges é o salvo-conduto da invisibilidade: transparência física, nudez moral (…) O anel da invisibilidade atiçou a fera da ambição desmedida e tornou visível o sonho de glória, preeminência e poder adormecido na alma do humilde pastor”.

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O Último Lance: Educação Estética num mundo digital

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Tuntematon mestari (The last deal). Diretor: Klaus Härö.  Heikki.NousiainenAmos BrotherusStefan SaukPirjo LonkaHenrikki Haavisto. 95 minutos. 2018.

O artista anônimo. Essa é a tradução correta do título original deste pequeno grande filme. O nome em português – O último lance– segue o pragmatismo americano, as regras do IMDB, base em inglês de todas as produções (One last deal). Felizmente a recomendação chegou-me através de uma crítica espanhola onde, lá sim, estamparam o nome original;  no filme, e no quadro em questão, o imã que aglutina todos os fotogramas, de autoria anônima.

Foi lá também que soube da qualidade impar do protagonista, o velho Olavi, um dos atores consagrados do teatro finlandês. Ele, sua filha Lea, o neto Otto, são o triângulo sobre o qual o diretor finlandês Klaus Härö, monta esta peça encantadora: se não uma sinfonia, sem dúvida um magnífico minueto.

Confesso que a minha curiosidade -por não dizer entusiasmo- já estava em alta e à procura da fita, quando vi o nome do diretor, e lembrei da maravilhosa produção -outra miniatura fascinante- que assisti alguns anos atrás. Aquele filme do professor de esgrima, que é um canto enorme à educação (O Esgrimista).

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Rafael Ruiz: “Intolerância”

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Até me cruzar com este livro, sempre pensei que a intolerância era a minha atitude habitual com a academia nas últimas décadas, uma espécie de mania não superada.  Não foram poucas as vezes que os meus colaboradores, antes de iniciar uma conferência, me advertiam: “Por favor, professor… Não fale mal da Universidade. Os alunos se assustam e não resolve”. Não sei se melhorei -pelo menos não me fizeram mais correções- mas certamente não mudou o meu modo de pensar.

Lembro de certa ocasião, a propósito do pequeno-grande livro de Ortega sobre A Missão da Universidade (escrito em 1920), que emprestei a um jovem médico. Leu, me devolveu e comentou: “Impactante. Vou pedir meu dinheiro de volta”. Não deve ter recebido nenhum reembolso, mas acabamos escrevendo um artigo juntos, para registar o fato.

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Joel Dicker: “O enigma do Quarto 622”

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Ed. Intrínseca. São Paulo. 2021. E-Book. 680 págs.

Leituras na Pandemia – 12

Imagem de Enigma do quarto 622, o

Adentrar-se para comentar o livro é risco desnecessário. Tratando-se de um romance de ficção policial desvendaríamos o segredo, atuaríamos, como se diz hoje, ao modo de um perfeito spoiler. Poderia se pensar que a obra do autor suíço tem um corte clássico dos romances de suspense -de Agatha Christie até Simenon, passando por Conan Dolye e Maurice Leblanc- mas não é verdade. Do ponto de vista literário pareceu-me muito distante dos clássicos do gênero. O que não implica que deixe de  prender a atenção, enganche o leitor.

Aliás, foi assim que o livro entrou na pauta da nossa tertúlia literária. Tinha recebido a sugestão com uma mensagem que dizia, mais ou menos: “parece que foi o livro mais lido na França neste ano; não deve ser grande coisa, mas nestes tempos tumultuados, com nervos à flor de pele, a gente precisa relaxar de vez em quando, deixar as coisas excessivamente sérias”. Como a recomendação procedia de alguém que tem familiaridade com a cultura, aceitamos e disparamos o desafio. Não sem antes pensar que o que relaxa a alguns não é mesmo que funciona com outros. Há quem desfrute das amenidades sem mais, outros conseguem descansar em braços de pensamentos mais profundos, e da beleza.

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Meu Pai: Corrida para o Oscar? Um mergulho no profundo e desconcertante mundo da empatia

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The Father. Diretor: Florian Zeller. Anthony Hopkins, Olivia Colman, Rufus Sewell, Olivia Williams, Mark Gatiss, Imogen Poots.  97 min. UK 2020.

Meu Pai

O filme já vinha com fama e com ganas na corrida do Oscar, quando chegou nas minhas mãos. Escolhi o momento para assistir, com calma. Também a companhia, no ambiente médico em que me movimento. Apertei o play. Um cruzado de esquerda, desconcertante, inesperado. Estou ainda me recuperando, enquanto alinhavo estes pensamentos, desconexos, que brotam dentro de mim, como manancial que não quer parar.

Soube, por comentários de amigos, da força do filme. Atores formidáveis -uma dupla imensa, Anthony Hopkins & Olivia Colman- acompanhados por coadjuvantes de enorme talha. Toda a força do teatro britânico -pois esse é o formato, teatro da melhor qualidade- posto em cena. Embora a encenação teatral implicaria outros desafios que me poupo de comentar para não tirar impacto ao filme. Sem amostras grátis, nem degustações de spoiler. Também pareceu-me escutar que o escritor do roteiro colocou como condição sine qua non, contar com o Anthony Hopkins no papel principal. Dai o nome utilizado no filme e a data de nascimento da personagem, que é a do próprio Hopkins.

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Lucia Berlin. “Manual da Faxineira”.

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Lucia Berlin. “Manual da Faxineira”. Companhia das Letras, São Paulo, 2015. 460 págs.

Leituras na Pandemia 11

Eis um livro singular, protagonista da nossa tertúlia literária mensal. Prosa clara, afiada, expressiva, que a autora faz gotejar em contos. Com uma tradução magnífica, pois conserva o estilo de Lucia Berlin “in natura”. É de se agradecer, porque o impacto do livro não é apenas o que se conta mas a forma peculiar da narrativa. Todo um estilo que impregna estes contos e que sugiro sejam lidos aos poucos, doses homeopáticas, dois ou três no máximo por dia. Com tempo para degustar.

Vale incluir um dos comentários que se recolhe no prefácio do livro, pela sua agudeza e precisão. “Os contos de Lucia Berlin são elétricos, zumbem e estalam quando seus fios vivos se tocam. E, em resposta, também a cabeça do leitor, seduzida, fascinada, ganha vida, com todas as sinapses disparando. É assim que gostamos de ficar quando estamos lendo — usando nosso cérebro, sentindo nosso coração bater”. Como Berlin mesmo diz, “a maioria dos escritores usa acessórios e cenários retirados de sua própria vida” pois de fato, ela escreve sobre uma mulher que tem quatro filhos e empregos como os que ela teve — de faxineira, enfermeira do setor de emergência, secretária de uma ala hospitalar, telefonista de um hospital, professora. Por isso diz: “Eu exagero muito e misturo ficção com realidade, mas nunca chego de fato a mentir”.

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Higinio Marin: Teoría de la cordura y de los hábitos del corazón.

Pablo González Blasco Livros 2 Comments

Higinio Marin: Teoría de la cordura y de los hábitos del corazón. Pre-textos. Valencia (2010). 288 págs.

Um livro que estimula a pensar. Também levava tempo repousando na minha estante. Parece que nestes momento singulares que vivemos, onde a voz confinamento tem repercussões variadas -no meu caso, um impulso para a leitura- vai tirando o atraso dos livros acumulados. É verdade, que nunca completamente, porque sempre adquirimos mais livros dos que seremos capazes de ler. Faz parte da atmosfera dos bibliófilos; Borges dizia que mesmo cego continuava a comprar livros, porque precisava da sentir-se rodeado da sua presença.

Este livro dor professor espanhol,  mais do que uma teoria da cordura (vamos traduzir por sensatez, mesmo sabendo que é insuficiente) onde em cada capítulo aborda os distinto hábitos do coração, é um exercício filosófico do autor, e faz o leitor entrar em sintonia, ressonância, e acaba elaborando suas próprias ideias. Assim, longe de mim, a tentativa de oferecer um resumo do livro nestas linhas. São, sim, o produto da interação entre o que Marin escreve e o que eu me atrevo a pensar, no vácuo das suas considerações. Ler este livro implica uma experiência fenomenológica onde cada um poderá ir recolhendo a colheita das suas próprias conclusões.

Os capítulos, adverte, “não são fruto de uma eleição deliberada, mas dos pensamentos que tomavam corpo seguindo as classes e leituras de um professor de antropologia e das leituras que me guiavam nessa aventura, pouco ortodoxa, e nada obediente aos protocolos de investigação de publicações “de impacto”. As questões tratadas -diz Marin- se me impuseram pelo seu próprio impulso. É uma docência repleta de vitalismo, como se pode deduzir. 

O que faz possível uma certa visão do mundo que Tocqueville chama “hábitos do coração”? Tornar explícitos estes supostos -estas lentes- através das quais vemos e nos posicionamos no mundo. O coração -pensa ele,  Tocqueville- tem costumes que constituem o caráter emocional de uma nação. E acrescenta o autor, do qual traduzimos livremente para o português: “O que podemos ou não acreditar está regulado por aquilo que sentimos. Para poder acreditar no inacreditável, é preciso modificar os sentimentos em relação a isso. A afetividade é o lugar de onde certificamos a realidade. Esse vínculo entre o que sentimos e o que tem sentido podemos chamar cordura, aproveitando a ligação etimológica entre o sentido e a cordialidade, entre a realidade e o coração”

Por isso, “não ter coração é carecer do órgão de reconhecimento, não poder ser afetado pelo que acontece com os outros. É esquecer a condição que se comparte com os semelhantes vulneráveis , dependentes, mortais (…) Memoria, cordura, sensatez que se tece no tear da memória como Penélope, a esposa prudente que espera o retorno de Ulisses. Quem carece de memória e recordações, perde-se como os companheiros de Ulisses. O coração é também um critério de autenticidade (o que se diz ou se faz ‘de coração’) e de integridade. Não são atos isolados, mas uma disposição habitual”.

Fala-se da morte, e da importância da memória do coração: “Os segredos dos mortos, suas recordações,  são necessárias para entender-nos  a nós mesmos. Uma tradição é como um coro em que os vivos e os mortos nos completamos uns aos outros, alcançando o sentido do que dizemos. A perdida da vida dos mortos constitui a morte dos vivos- diz Santo Agostinho nas Confissões…”. Também a sepultura e o túmulo tem espaço nestes hábitos do coração. “Um esforço por domesticar a morte, para resgatar a memória. Uma cicatriz na terra e na memória(…) O modo de vida dos habitantes depende da classe de sepultura que damos aos defuntos. Nossas cidades carecem de habitantes pelo mesmo motivo que nossos mortos carecem de memória, lembrança e sepultura.  O preço que os mortos fazem pagar aos vivos que não guardam sua memória é deixá-los sem um lugar onde possam chamar-se habitantes: os mortos sem sepulturas e memória, deixam o mundo sem casas nem habitantes. Somente a memória edifica, porque se opõe ao tempo, abre o espaço, o revela e o mostra na sua própria obra”.

Lembrei de Hans Jonas quando  afirma que a distinção entre os humanos e os animais está constituída por um tripé integrado pelo utensílio, pela imagem e pelo túmulo. O utensílio é a técnica, e neste ponto não há dúvidas quanto a distinguir-se dos animais porque os humanos conseguem incorporar em pouco tempo toda a técnica acumulada na história que lhes precede.  O segundo elemento, imagem, inclui a capacidade que o homem tem de representar a realidade através da arte. A arte e as humanidades são caminhos para melhor conhecer a realidade na qual o ser humano está imerso, e melhor conhecer-se a si próprio, na sua dimensão corporal e espiritual. A terceira perna do tripé está representada pelo túmulo. Somente o ser humano tem consciência da transcendência, e a representação da morte o coloca em contato com a dimensão que se estende além do seu próprio ser. Perder o sentido da transcendência, a dimensão espiritual, o sentido de eternidade e a duração do tempo próprio e do universo que lhe rodeia tem consequências funestas, porque à base de não frequentar o túmulo, “porta da transcendência”, acaba esquecendo o sentido de missão e a importância de sentir-se útil, como elemento integrante da própria felicidade.

Da morte o autor volta-se para a vida que é trajetória, destino, em vocação de liberdade, incluindo uma bela citação de Ortega: “A vida é converter a viagem em bagagem”. A vocação implica precedência, mas pendente de reposta e aberta ao diálogo. O destino nos converte em “atores” representando um papel de liberdade que não é absoluta. A noção moderna de liberdade é afirmar que o homem é autor absoluto da sua vida , descartando tudo o que suponha certa prefiguração da sua existência (incluído gênero, e outras coisas, que se distanciam da natureza). Autoria e autenticidade como critério único da liberdade moderna, conceito que é questionado. Porque afinal, a forma mais importante de liberdade, não é eleger, mas ser escolhido, e saber responder.  Ai está a vocação, que vai além da liberdade de escolha, mas de resposta a uma eleição. Daí a importância dos  hábitos do coração que facilitam a reposta a esse convite….A vocação é a forma livre do destino, a forma em que a liberdade prevalece sobre o destino. Deste modo se faz original, o homem se faz filho dos próprios atos sem ter que eliminar pai, mãe, tradição e natureza. E por isso, é capaz de agradecer. A liberdade nos permite responder e fugir ao destino da tragédia grega, para assinar em baixo dos nossos atos.

Fala-se da inveja: Cain não invejava as posses de Abel, mas suas oferendas. A inveja não é tanto do que se possui,  mas do que é possível dar, ou dar-se.

Paternidade e filiação: o coração dos ímpios não valoriza o peso da própria ascendência. E da compaixão ligada à piedade, que se inicia pelo reconhecimento de filiação: A compaixão se estabelece entre iguais de fortuna desigual; a piedade inclui o sentimento de ascendência familiar. Depois se expande em fraternidade. É impossível compaixão sem piedade familiar, sem veneração da ascendência; um ímpio de coração nega a vinculação com os seus maiores, dependentes e impedidos. Piedade é o sentimento da existência como dívida , como gratidão e oferenda (por isso o parricídio em Roma, era punido com severidade, eliminando-se da face da terra qualquer traço do parricida, qualquer lembrança de que existiu). A piedade não sobrevive quando não se tem hospitalidade, reconhecimento do estranho; um desdobramento que nos levam até a pureza de linhagem e os campos de extermínio. 

A hospitalidade é tema amplamente desenvolvido pelo autor. “O animal com mãos é o único que sorri, e quando o faz mostra os dentes de modo inofensivo, e abre um espaço interior onde a acolhida é possível. Mãos livres para exprimir gestos de acolhida, de hospitalidade tipicamente humana. Se a diferença entre o humano e o divino se dá pela mortalidade dos homens, o âmbito do humano se abre lá onde se oferece a hospitalidade, de uns homens aos outros. Fora da mortalidade, estão os deuses; sem hospitalidade, encontram-se as bestas e os degenerados. Os homens são mortais e hospitalários. Há homens no mundo pela hospitalidade: nem deuses, nem bestas (…) O viageiro nos situa no dilema: ou comer ele, ou dar-lhe de comer (invocação a Ulisses e os  ciclopes). 

“A hospitalidade é uma obrigação do anfitrião à qual o hóspede não tem nenhum direito. A gratidão é o correlato apropriado para a hospitalidade. O hóspede é quem salva nossa casa de ser uma antro de ciclopes; o hóspede nos libera do sequestro que exerce o próprio eu  e faz de nós reféns, citando a Levinas. Hospitalidade é um alarde de confiança , um poder para nos sobrepor ao medo que produz apalpar nossa vulnerabilidade. Deixa exposto a boa vontade do anfitrião ao hóspede; um hóspede de caráter imprevisto que revela uma disposição aberta e incondicional, atenta ao caráter suplicante do viageiro” Abrir a casa nos humaniza; o isolamento -ficar longe dos problemas dos outros- nos desumaniza….suavemente, sem perceber. O egoísmo da blindagem!

A hospitalidade é um hábito do coração, mais do que um simples cômodo ou lugar. Na história foram os monges hospitalários os que fizeram hábito e profissão da acolhida, segregando a hospitalidade da casa do habitante, levando-a até o local da profissão: o hospital! Hoje, um paradoxo: tanto as profissões mais hospitalarias como os locais de hospitalidade, figuram entre os cenário mais inóspitos. Temos ai servido todo o tema da humanização das profissões da saúde…Um prato suculento, um tema infindável no meio da sedução da técnica. Hospitalidade é abertura ao convite e mesmo ao estranho. Mas hospitalidade não é simples familiaridade.  Há organizações criminosas que “respeitam a familiaridade” e praticam o crime organizado, como a Máfia…..

Sucedem-se temas convidativos e atuais, nesta excursão antropológica: “Surpreende que a cultura contemporânea se resista a reconhecer a relação entre pudor -a falta dele- e a violência. Falta o sentimento do eu, do outro, próprio do pudor, abre-se espaço para a agressão e violência”. A religião: lembrando Ortega quando esclarece que religioso implica ser escrupuloso, sem se comportar ligeiramente, mas com cuidado. O contrário é negligencia, abandono. Nec-ligere…..contrário de religo e de diligere. Para isso, diz Ortega, o homem tem de contar com o que está além dele, para a realidade transcendente…Esse é o sentido de religio para os romanos.

A ilusão do falso controle: a pretensão de suficiência converte em culpável todo evento indesejado: as mortes por incompetência médica, os acidentes por negligencia de gestão, as catástrofes por negligencia política, os crimes por omissão policial. A tecnologia nos seduz hoje com uma pulsão de suficiência, que lembra o poder dos ciclopes grego, que nos faz pensar em que tudo teria de estar sob o controle da técnica…..

O rancor é um modo de preservar uma lembrança, de perpetuar a dor. Pelo rancor não é a ferida a que doe mas a lembrança, que se faz ferida. Ter rancor é possuir uma cicatriz cujo autor não é quem nos produziu o dano, mas nós mesmos; é o rancor da vítima o que mantem quente a intenção do agressor, e lhe dá um poder do qual carece por si mesmo. O rancor é a cooperação livre e eficiente da vítima com os desejos do agressor; faz-se dano a si mesmo para manter e justificar o desejo de vingança. Um hábito do coração que é mutilação, uma velhice prematura.

O perdão é a restauração do domínio de si da vítima, uma restauração da soberania do eu . Perdoar o agressor é colocar-se a salvo do poder alheio  maléfico, limitar sua pretensão de se perpetuar na nossa alma. O perdão é uma lembrança do acontecido: recorda-se o que aconteceu mas como se não tivesse acontecido. O perdão nos coloca mais a salvo de nós mesmos do que dos outros.  Perdoar, per-donnare, dar em abundancia , dar mais da conta…..

E, naturalmente, a admiração e o conhecimento. A inclinação a conhecer (admiração) é nosso modo de estar no mundo. A capacidade para o assombro é a que permite a admiração. Filósofo é quem sabe olhar o mundo de modo que o obvio deixa de sê-lo, ou melhor, sem deixar de sê-lo, torna-se interessante. (destaque por nossa conta!)  A modéstia transforma o saber em sabedoria. É autoconsciência da finitude humana, e do seu conhecimento. Quando há admiração e modéstia, o saber e a ignorância não se anulam entre si, pois a consciência da ignorância faz crescer o conhecimento. Mas quando a regra é a dúvida, (como Descartes) o conhecimento e ignorância se excluem, não convivem porque se busca a segurança da evidência. Aqui entra todo o fascinante tema da incerteza, de como conviver com ela sem perder a classe, de como funcionar na vida sem ansiedades de falsas seguranças. A reflexão sobre isto também dá pano para manga.

Lembra-nos o autor que na Ética a Nicómaco, Aristóteles lembra que  uma vida virtuosa, esforçada e meritória não é necessariamente uma vida feliz, pois precisa da amizade para estar a salvo dos desastres da existência. Um belo epílogo para estes hábitos do coração que requerem a convivência com os semelhantes. Para isso é preciso uma ingenuidade sadia, ter capacidade de sonhar e alimentar a esperança. Uma última anotação a modo de fechamento desta aventura antropológica.

“O diabo menospreza a liberdade do homem porque não espera nada bom. Não é por ignorância mas por conhecer tudo (aquilo de…. este filme eu já vi). O diabo é conservador, em palavras de Claudio Magris, porque não acredita no futuro nem na esperança; cínico e conservador, não acredita que a humanidade pode se regenerar, e aceita todos os males como inevitáveis. A desesperação é um erro moral e intelectual, que dá o destino humano como sabido. Um erro com sabor diabólico”. E como antídoto do erro diabólico e conservador, a cordura saturada de esperança: “A cordura do humanamente possível requer a serena paciência de quem não dá tudo por perdido, e espera o melhor  A esperança é o hábito do coração que nos permite habitar o mundo desde os sonhos dos ideais, sem estar adormecidos; desde os encantamentos das fábulas infantis sem criancices, da paixão pelo bem e a felicidade do humano, sem estar ofuscado. A esperança nos permite habitar o mundo desde fora do mundo e incorpora  a temporalidade finita da nossa presença nele, e a terna inclinação ao seu favor. A esperança define o homem”