Franny & Zooey: Revisitando Salinger.

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J. D. Salinger: Franny & Zooey. Editora do Autor Ltda. Rio de Janeiro, 1970. 170 págs

Tinha lido este livro há mais de dez anos e, na época, fiz um comentário destacando como pessoas diferentes, podem mostrar o mesmo amor, também em diferentes formas. Mas todas verdadeiras. Voltamos sobre o livro, revisitando Salinger, um autor cult, raro, peculiar. O cenário agora é a Tertúlia Literária mensal. E a leitura do livro -assim como os comentários- sem perder de vista aquela primeira impressão que continua vigente, é enriquecedora.

Os diálogos entre os dois irmãos, e a escuta paciente da mãe, são o pano de fundo desta obra que o próprio autor, no mini prefácio, quase suplica ao editor que a publique, como se fosse um pedido do seu filho pequeno Mathew Salinger solicitando um sorvete de limão. Quer dizer, um capricho bem ao modo deste escritor tão peculiar.

Franny é a versão feminina de Salinger, uma espécie de apanhador no campo de centeio de saia. Uma contestadora que reclama de um mundo medíocre. Deixa isso claro ao namorado, que sente lhe escapa das mãos: “Você gosta de mim? Nem uma única vez você o disse na sua horrível carta. Odeio você quando quer bancar o supermacho e fica todo cheio de reticências. Não é que realmente o odeie, mas sou constitucionalmente contra os homens fortes e calados”. E acrescenta o autor: “Por vezes, tinha um trabalho infernal para esconder sua impaciência a respeito da inépcia do macho da espécie, em geral, e de Lane em particular (…) Uma garota que não só era extraordinariamente bonita mas, além disso, não pertencia ao gênero pulôver de malha e saia de flanela”.

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Living: Os sustos que nos acordam para a vida.

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Living. Diretor: Oliver Hermanus. Roteiro: Kazuo Ishiguro. Bill NighyAlex SharpAimee Lou Wood, Adrian RawlinsTom Burke,  Hubert Burton. UK. 2022. 102 min.

Sabendo que se trata da refilmagem de um clássico, assisto sem pretensões…e fico maravilhado. Contemplo a história construída por Kurosawa nos anos 50, agora em versão britânica, mas sem negar as referências: lá está o nome do grande diretor japonês, outros da  sua linhagem que carregam o mesmo sobrenome e, fosse pouco, convocam um prêmio Nobel, também nipónico- Kazuo Ishiguro- para organizar o roteiro. E para dirigir toda esta sinfonia, um diretor sul-africano, que é garantia de Commonwealth, sabor absolutamente britânico.

O resultado é um filme elegante, delicado, tocante, repleto de recados. E também um saca rolhas de reflexões: aquelas que vão se acumulando com os anos, as leituras, os escritos e, especialmente, com as vivências. Organizar essa enxurrada que acode à mente, enquanto contemplamos os fotogramas do filme  -tarefa nada fácil-  que me atrevo a alinhavar, desordenadamente, nestes parágrafos.

O argumento já tinha sido contado por Kurosawa: um funcionário público que gastou a vida, fazendo de conta que trabalhava, perdido entre papeis, processos que, mal ou bem, empurrava para outros departamentos. De repente chega a notícia: um câncer que lhe coloca um dead line (nunca melhor dito). E com o susto, um despertar para a vida, aquela que nunca viveu.

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Emmanuel Carrère: O Reino.

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Emmanuel Carrère: O Reino. Emmanuel Carrère: O Reino. Alfaguara, Rio de Janeiro, 2016. 440 págs.

Não costumo gastar tempo comentando livros que não recomendo. São tropeços que experimentei, guiado por alguma crítica duvidosa. E visto que eu já sofri o tropeço, não me agrada empurrar outros para deparar-se com a mesma lombada. Por isso, tinha desistido de comentar este livro, do qual fiz a seguinte anotação: Uma conversão, uma desistência, uma permanente hesitação, cercada por uma cultura notável -lendo de tudo, e de todos os lados, de Renan até Santo Agostinho- e uma dúvida persistente, como corresponde a muitos dos intelectuais franceses. A dúvida metódica de Carrèrre, não de Descartes. Mas no final, da na mesma. A desconstrução fruto de intelectualismo e cultura mal digerida, que faz ver as coisas com olhos saturados de racionalismo. Um processo onde se apalpa uma atrofia da humildade, que é o único caminho para descortinar uma lógica que transita num plano diferente: a lógica e Deus.

Mas revendo as anotações que destaquei durante a leitura do livro, pensei que sim, poderia ser útil um breve comentário, pois afinal é o caminho que qualquer homem pode sofrer, se carece dessa lógica acima sugerida. A conversão sincera de Carrère, e a queda posterior no niilismo, traz ensinamentos que podem iluminar este doloroso processo.

É preciso reconhecer que Carrère escreve com maestria, em descrições onde se misturam fatos externos, com o seu próprio interior, e talvez por isso transpira hesitação e dúvida. Na crítica desavisada que comentei, figurava um título sugestivo sobre o estilo do francês: uma mistura do eu literário com a realidade.

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Edith Eva Eger: A bailarina de Auschwitz

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Edith Eva Eger: A bailarina de Auschwitz Sextante; GMT Editores. Rio de Janeiro, 2019. 337 págs. (Título original: The Choice)

O prefácio que introduz este livro tocante, é uma ótima overture para a leitura: “A vida da Dra. Eger foi pontuada por tragédias. Ela foi presa em Auschwitz quando era apenas uma adolescente. Apesar da tortura, da fome e da constante ameaça de morte, conservou a liberdade mental e espiritual. Não se deixou abater pelos horrores que sofreu e saiu fortalecida pela experiência. Na realidade, sua sabedoria é resultado dos episódios mais traumáticos que viveu, e usar suas experiências para ajudar as pessoas a descobrir a própria liberdade. Nesse sentido, seu livro vai muito além de uma memória do Holocausto. Seu objetivo é ajudar cada um de nós a escapar da prisão da própria mente. De certa forma, todos somos prisioneiros, e a missão de Edie é nos ajudar a entender que, assim como agimos como nossos próprios carcereiros, também podemos nos tornar nossos próprios libertadores”.

A autora explicita como frequentar o passado, as experiências traumáticas, é o caminho para a própria construção. Um caminho que levou décadas para percorrer, mesmo estando em aparente liberdade e sendo uma sobrevivente: “Ao longo do tempo, aprendi que posso escolher como reagir ao passado. Posso me sentir triste ou esperançosa, posso ficar deprimida ou feliz. Sempre temos essa escolha, essa oportunidade de controle. Estou aqui, isso é agora, aprendi a repetir para mim mesma, sem parar, até o pânico começar a diminuir (…) Eu ainda não tinha percebido que meu silêncio e meu desejo de aceitação, ambos baseados no medo, eram maneiras de fugir de mim mesma. Nem que ao escolher não enfrentar diretamente a mim ou ao passado, eu ainda escolhia não ser livre, mesmo décadas depois de meu encarceramento. Eu tinha um segredo que me aprisionava”

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Leonardo Padura: “Como poeira ao vento”.

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Leonardo Padura: “Como poeira ao vento”. Ed. Boitempo, 2021. São Paulo 580 págs. (“Como polvo en el viento”. Tusquets. Barcelona. 2020. 658 págs)

Conhecendo a prosa cativante de Leonardo Padura, escalamos o seu último romance para a nossa tertúlia literária. Narrativa magnífica quando mergulha em romances com fundo histórico, como O homem que amava os cachorros para mim, sua obra prima. Também vale destacar Hereges. E  outras, no meu modo de ver, menos atraentes, como onde delega o protagonismo no inspector Mario Conde, com aquém não me alinho totalmente.

Mais uma vez, Padura aborda um tema muito pessoal, telúrico, com sabor da sua terra: os emigrantes cubanos que se dispersam -por um motivo ou outro- como poeira ao vento. Um romance longo, de leitura fácil -confesso que é difícil parar de ler- embora não faltem tropeços, lombadas molestas. Me pergunto -e aqui coloco o meu porém a esta obra de Padura- como alguém que consegue uma delicadeza impar para descrever a morte de um cavalo, nos serve incômodas grosserias nos atritos sexuais. A rigor, não precisaria desse apelo, pois não é isso que vende, pelo menos no caso do escritor cubano, que tem uma texto corrido de prosa mais do que superior. Uma deficiência que poderia ser evitada, tudo seja dito.

Os exilados cubanos, que no novo destino “não conseguiam deixar de bailar se o disc-jockey colocava uma música chegada de uma ilha da qual renegavam vinte e quatro horas do dia, mas da qual não queriam (ou não podiam) desprender-se”. Um pais -diz com elegante ironia referindo-se a USA-  onde era mais fácil e barato ser astronauta do que revalidar um título de doutor em veterinária, obtido em alguma universidade cubana.

A descrição das personagens é magnífica, transparente, uma radiografia de cada figura. Porque isso são as personagens de Padura, figuras singulares. A garota, filha de uma cubana que renega sua origem, tenta voltar às raízes que sua mãe odeia. Percebe, a jovem, uma secreta atração pelo cubano, quando na realidade não passa de uma nova iorquina com cidadania americana. O pai da garota, um argentino de ascendência judia,  que também abomina seu pais de origem, com exceção da seleção de futebol, os cortes de carne, e a sanfona de Piazzolla.

Vale o exemplo de um diálogo entre pai e filha:

-Vocês os argentinos, quando se juntam…..se fazem mais argentinos?

-É uma desgraça nacional. E cuidado, porque a segunda pessoa que um argentino quer detonar (eufemismo para substituir o verbo original, já que obviamente lei Padura em espanhol) é outro argentino. Porque a quem prefere mesmo detonar é a um uruguaio.

As personagens se alternam, em histórias paralelas, que arrancam de Cuba para chegar a USA, a Espanha, a outros lugares. Alguns fazem do seu novo pais, uma réplica da ilha caribenha. “Quando Marcos chegou à cidade, comprovou que os poucos nativos resistentes, se distinguiam colocando uma bandeira da União, em algum ponto visível da sua morada, para lembrar-se do pais onde estavam vivendo agora. Os centro-americanos, os porto-riquenhos, os venezuelanos, fugiam dali assim que possível, pois mal suportavam o peso do orgulho e a prepotência dos cubanos, que até morrendo de fome, se comportavam com seres superiores (…) A essência daquele bairro (Hialeah) é que ali era possível viver com um pé em território colonizado em USA e com ou outro em Cuba. Refugiados que se empenhavam em continuar usando dessa condição, e que se conseguiam falar inglês de forma fluente, se convertiam em pessoas de vantagem”.

A jovem, Adela, que é o início da história, junto com o seu noivo-marido, Marcos,  sente que é possível compreender os cubanos, mas nunca replicá-los, falta-lhe algo para ser o que eles sempre foram. “Vocês, os cubanos como minha mãe, passam o dia falando, mas nunca dizem tudo o que pensam”.

Tudo isso porque o grupo do qual arrancam -jovens rebeldes que vão se amoldando ao novo regime, ou migram da ilha- amigos que “com seu romanticismo e sua fé em ebulição, renegaram seu vanguardismo burguês, e se colocaram à disposição para construir obras funcionais e resolver as necessidades coletivas…..E, enquanto isso, foram pendurando nas paredes do seu estúdio fotos de Mao-Tse Tung (convenientemente substituída por outra com Ho Chi Minh), Jean Paul Sartre (em algum momento trocada por outra com Salvador Allende) ou com um sorridente Yuri Gagarin (onde anteriormente estava uma de Nikita Kruschev)”. Com esta descrição lembrei de Delírio Americano, livro que recentemente comentei neste espaço, onde por algum motivo não se fala de Padura, uma falha que também apontei.

Magníficas descrições da decadência cubana, gente “confinada em um apartamento que já teve um toque de graça, um ar de casa, e agora parecia um depósito de detritos: transbordando de frascos de remédios vazios, eletrodomésticos inúteis, móveis estripados, livros empoeirados, paredes sem memória da última vez em que receberam uma demão de tinta, ondas de fedor por dentro e por fora. O que fora seu lar agora lhe era apresentado como o prelúdio de todas as mortes, o panteão de suas memórias”.

E os emigrantes em busca de nova vida, querendo esquecer, sem conseguir, suas raízes. Como Dario, que “apenas algumas semanas antes de partir para o exílio, sob o inclemente sol cubano que bronzeava o couro, cavava no pátio da casa de Fontanar, decidido a desenterrar batatas-doces ralas para o almoço, sem chapéu ou camisa ou saber que havia cremes L’Occitane en Provence como aquele que já o perfumava e lhe dava a aparência de um tigre domesticado”. E que chegando a Espanha, a Barcelona, se esforçava por ser “mais catalão que os catalães e escondendo de si mesmo as suas origens agrestes, e ao mesmo tempo tentando não o dizer a si próprio, sabia muito bem que nunca seria um verdadeiro catalão (nem para ele nem para os radicais e irredimíveis catalães) e que realmente não estava interessado em ser aceito como catalão: porque, na verdade, ele só queria se tornar outra coisa, outro Dario, não importava se ele era catalão ou marciano, mas sempre mais longe do Dario original. Enterre o passado, conte os ganhos, nunca as perdas. Derrote qualquer indício de nostalgia (…) Apesar de tudo que sofreu, Dario nunca sentiu vontade de odiar, mas também não foi capaz de amar, muito menos de perdoar”.

Figuras tocantes, como Clara, Santa Clara dos amigos a chama Padura, que é quem une o grupo. Na verdade o unia no passado, e agora faz o que pode. Uma “competente graduada universitária, analfabeta tecnológica”, que vê partir os membros da sua família: “ por fim o jovem transpôs a barreira: a mesma barreira que em outras duas ocasiões e em diferentes layouts e salas daquele aeroporto ela vira transpor o marido e o filho mais velho, sempre com a sensação avassaladora de que os estava perdendo, que talvez os via pela última vez. Com a certeza de que na possível viagem sem volta levavam consigo mais que um pedaço de sua vida, uma parte de seu corpo, a cada partida mais diminuída por amputações radicais”

Os que permanecem na ilha, como Clara e Bernardo, “passaram a ter mais tempo, embora para a maioria o ganho fosse inútil, pois era um tempo vazio ou errático, distorcido, como se passasse por um relógio macio de Dalí”. E Bernardo, outra figura que o escritor apresenta com doçura, afirma em magnífico resumo: “O que nos aconteceu? Aconteceu tudo e sem nos pedir licença. Os sonhos agora são insônia ou pesadelos. Aconteceu-nos que perdemos. Este é o destino de uma geração – sentenciou, e recuperou seu copo com a mão já trêmula e com um só golpe bebeu a bebida-. E assim vamos, camaradas, irmãos de luta: de derrota em derrota… Até a vitória final!”

Loreta , por dar-lhe um nome entre muitos, figura tormentosa, azeda, quase nauseante, que “se sentia melhor rodeada de animais que lhe agradeciam a sua existência e carinho do que de pessoas determinadas a exigir-lhe cuidados, palavras, fidelidade, empenho? Loreta Fitzberg não gostava de Loreta Fitzberg nem da vida que levava, nem do meio que a rodeava, como Elisa Correa anos atrás, na encruzilhada mais sórdida de sua existência, tinha nojo de ser Elisa Correa e de viver no mundo. perigoso e decadente em que vivia, e por isso foi necessário tentar, de novo, uma nova encarnação? Ou, mais precisamente, um verdadeiro renascimento”.

As quase 600 páginas, riquíssimas na descrição de personagens, estão continuamente salpicadas de críticas a Cuba: não somente ao regime, mas ao modo de ser cubano, algo que Padura critica sem piedade.  “Não estamos na memória de ninguém e ninguém está na nossa memória. Somos e ao mesmo tempo não somos, e ainda levará muitos anos para começarmos a ser algo mais do que fantasmas. Vivemos a deplorável atitude cubana de colocar o que os outros pensam antes do que se prefere. Todos cubanos. Odiando-se, desde o início e até a eternidade… Irving sempre diz: em Cuba não importa que o sol brilhe, que não faça calor e que o dia esteja lindo. Em algum momento alguém vem e detona (novo eufemismo na tradução livre) tudo. Será um castigo histórico?”

E o regime? Uma desculpa pare um modo de ser negativo? O escritor coloca estas palavras em boca de Loreta, mas nota-se que saem de dentro dele: “Seria mais fácil colocar a culpa de tudo no comunismo… Mas como sempre digo, o comunismo é uma consequência, não uma causa. Uma consequência que pode agravar certas coisas, por muitas razões, mas a condição humana é a mesma em qualquer sistema, porque é eterna… Uma das poucas coisas eternas… O que está no fundo de tudo é a vaidade, a o mais falso orgulho, uma capacidade de fazer o mal que os domina… É uma doença nacional”.

Exilados, remanescentes, todos enfrentando seu passado e suas raízes. “No socialismo nunca se sabe o passado que te espera”, quer dizer, os sustos que levas quando o frequentas. E a frase de José Marti, o poeta da independência  de finais do XIX, que escrevia: “Prefiro ser estrangeiro em outros países do que no meu. Prefiro ser estrangeiro a ser escravo no meu próprio pais”.

Um livro que, tocando a realidade, é uma aventura fenomenológica da mão das personagens. Algo que Padura adverte na nota final, com a que encerramos esta viagem: “Como escritor, alimento-me da realidade, mas não sou responsável por ela para além das minhas vicissitudes individuais e do meu compromisso civil, como cidadão e como testemunha com voz, que apenas pretende deixar um testemunho pessoal do meu tempo humano”. Toda uma epopeia: cubana e, principalmente, humana!

Os Fabelmans: Um canto de amor ao Cinema.

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Os Fabelmans: Um canto de amor ao Cinema. The Fabelmans. Diretor: Steven Spielberg. Michelle Williams. Gabriel LaBelle. Paul Dano. 151 min. USA 2022.

Os Fabelmans: a mais recente entrega de um grande diretor. Um canto de amor ao cinema -ocorreu-me que seria uma espécie de Cinema Paradiso do diretor americano. Sua trajetória de vida, e de paixão pela sétima arte. Talvez com isto está tudo dito. Mas, obviamente, não resisto a comentar o recente filme de Spielberg. Aliás, nem quero fazê-lo, visto que já me identifiquei – e assim escrevi várias vezes- como um Spielberg-boy!

Acompanho de longa data a produção dele. Comentei amplamente vários dos seus filmes: O resgate do soldado Ryan, Cavalo de Guerra, A ponte dos espiões, A Lista de Schindler e Amistad. E, não contente com isso, tenho consciência de que lhe devo muitos royalties pelo uso que faço das suas produções no meu trabalho como professor de medicina. Cenas entrecortadas e comentadas que mostram a importância da vocação médica e do profissionalismo. Enfim, uma relação de longa data, uma amizade de há muito tempo, como dizia o inspector Renault a Rick (Bogart) no final de Casablanca.

Steve Spielberg que entrou em cena há muitas décadas com tubarões e arqueólogos, com extraterrestres e contatos de terceiro grau, mergulha na aventura do ser humano -um universo em amplo espectro, de cor púrpura até o sol como império- e desemboca definitivamente nos dilemas morais, onde me conquistou definitivamente. No ano passado, quando assisti a sua versão de West Side Story, pareceu-me perceber que era chegado o momento de fazer os filmes que sempre sonhou, os que marcaram a vida dele. Nesse mesmo comentário, apontei para Belfast, outro filme de lembranças, dessa vez por conta do britânico Kenneth Branagh. Os Fabelmans são como o  Belfast de Spielberg,  em afirmação que, embora evidente, pode pecar de simplista.

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Albert Schweitzer: “Entre a água e a selva”.

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Albert Schweitzer: “Entre a água e a selva”. Narrativas e reflexões de um médico nas selvas da África Equatorial. Ed. Unesp. 2010. São Paulo. 179 págs.

Um amigo, médico humanista, deu-me este livro de presente há já algum tempo. Agradeci e, como sempre faço, deixe ele repousar na minha estante, até encontrar o momento certo para me debruçar sobre ele. O fato, sempre encantador, de ganhar um livro, não significa necessariamente que tem de passar na frente da programação que, há muitos anos, faço das leituras que quero abordar nos próximos meses. Uma saudável quarentena na prateleira, deixa os livros mais apetitosos, faz decantar a vontade de lê-los, algo análogo ao vinho quando o deixamos envelhecer. Funcionou.

As memórias -breves, de apenas 4 anos- de Albert Schweitzer é o corpo deste livro. Quem era professor de teologia na Universidade de Estrasburgo, e músico especialista em Bach, decide, com 30 anos, estudar medicina, doutorar-se e parte com a esposa em 1913 para a Africa francófona, o Gabão, onde ficará 4 anos, praticando a medicina na selva equatorial. O trabalho notável nessa região, e as informações -científicas e também antropológicas- renderam-lhe o Prêmio Nobel a Paz em 1952.

E de fato, o que mais me impressionou foram as observações etnográficas onde revela o seu aprendizado durante a imersão na cultura africana. “Tive de aceitar, logo na primeira surpresa, a primeira aprendizagem africana: a falta de boa-fé dos nativos”. Mais do que falta de boa-fé, hoje diríamos falta de proatividade. Os nativos somente trabalham se lhes é absolutamente necessário. Vejamos este parágrafo que é contundente: “Não me sinto mais no direito de falar categoricamente da preguiça dos negros, desde que quinze nativos subiram o rio remando quase sem interrupção durante trinta e duas horas para me trazer um branco gravemente ferido. Há ocasiões em que o nativo trabalha assiduamente, mas só trabalha na medida em que as circunstâncias exigem. O filho da natureza não é nunca senão um trabalhador ocasional (…) Caso tenha aceitado um contrato e ganhado o suficiente para arranhar aquilo que tinha em vista, não verá mais motivo para continuar a sacrificar-se e voltará à aldeia, onde sempre encontrará casa e alimentos. O nativo não é preguiçoso mas sim um homem livre, daí ser um trabalhador ocasional”.

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Um herói: Honra e Integridade perante a indiferença.

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Ghahreman – Irán, 2021 Diretor: Asghar Farhadi. Amir Jadidi, Abolfazl Ebrahimi, Mohsen Tanabandeh, Sarina Farhadi, Fereshteh Sadrorafaei 127 min.

Devo confessar que o estímulo para assistir este filme foi o nome do diretor, Asghar Farhadi. Não porque eu tenha uma especial sensibilidade pelo cinema do oriente médio, mas porque já comprovei que o diretor iraniano sempre faz filmes sérios, que aprofundam e tocam a sensibilidade ocidental -a minha, sem dúvida- e imagino que também a oriental. E tudo sem perder a elegância, a classe, sem apelações, convidando o espectador a ler nas entrelinhas, sem desdobrar-se em palavreado inútil, ou em reações histriónicas, sendo seus dramas de inegável profundidade.

Deste modo Farhadi consegue pilotar atores franceses misturados com os iranianos, como em O Passado; constrói dramas de fundo oriental mas com valores universais como em A Separação, e até comanda um elenco de atores espanhóis -todos fetiche de Almodóvar, quem diria- para entregar aquele drama superior, Todos já sabem. Enfim, um diretor que prestigia suas raízes mas consegue atingir o público ocidental, e até com um cruzado de esquerda, porque te faz pensar.

Um herói, é um filme aparentemente sem pretensões. Ou melhor, um micro drama familiar que, imagino, deve ser situação não incomum na sociedade iraniana. Um homem preso porque não consegue pagar a dívida. O credor tem suas razões -afinal, cadê o dinheiro que ele me deve? – e o presidiário tem as suas, e os seus sonhos. O protagonista, Soltani, tem  também um filho, doce, gago, esforçado que é um recurso delicado com o qual o diretor conecta com a compaixão ocidental. “Não quero me projetar nem instrumentalizar a gagueira do meu filho” -diz ele a certa altura.

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Heinrich Von Kleist: Michael Kohlhaas.

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Heinrich Von Kleist: Michael Kohlhaas. Grua Livros, São Paulo, 2014. 155 págs.

Eis um livro, pequeno e surpreendente, que repousava na minha prateleira e que por algum motivo decidi tirar do seu repouso e li em dois tempos. Breve, direto, um pouco barroco na sua narrativa. Escrito por um autor que também teve um final trágico, saturado como estava do espírito romântico na transição dos séculos XVIII ao XIX. Parece que se converteu num clássico, e conforme avançava na leitura perguntei-me o motivo desse predicado. A resposta, certamente, reside no conteúdo mais do que na forma que, insisto, pareceu-me pouco atrativa.

O autor relata a trágica história de um comerciante de cavalos, honesto, íntegro, que ganha a vida com o seu negócio.  Michael Kohlhaas, o criador de cavalos, injustiçado, lesado nas suas propriedades pela arbitrariedade de senhores aristocratas nobres, que faltam à palavra, e exigem uma lealdade que eles nunca souberam dar. Busca a reparação, bate em todas as portas infatigavelmente, e comprovando que nada funciona, e que ninguém liga, decide tomar a justiça pelas suas mãos. Um romance breve, inspirado em fatos reais -até Lutero aparece nele- que faz a ponte de literatura romântica para o realismo alemão.

Assim descreve o escritor ao protagonista, e explica a tragédia que se cerne sobre ele: “Temente de Deus, criava os filhos que a mulher lhe dera para serem trabalhadores e leais; não havia um entre seus vizinhos que não tivesse desfrutado de sua bondade ou de sua justiça; em resumo, o mundo haveria de abençoar a memória daquele homem, não tivesse ele exacerbado numa virtude. O senso de justiça, porém, fez dele um bandoleiro e assassino”.

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Salvador de Madariaga: Hernán Cortes.

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Ed. Espasa. Madrid 1948. 739 págs. Português: Ed. Ibrasa São Paulo. 1961. 425 págs..

Uma recente viagem, passando pela Cidade de México, por conta de uma conferência sobre Humanismo Médico em Tempos de Crise, foi um dos estopins para voltar sobre este livro, que já tinha lido há mais de três décadas. Mas houve outro: o recente musical, Malinche, criado por Nacho Cano, um roqueiro dos anos 80 na Espanha, que após 12 anos de pesquisa, reedita a história de Cortés e da mulher que, do seu lado, foi a ponte das culturas hispânica e mexicana. Melhor do que falar do musical, vale ler a entrevista que o compositor deu há um par de meses. E ainda, assistir o making-off da produção que é magnífico. 

A biografia de Cortés é um dos trabalhos mais consagrados de Salvador de Madariaga: profunda, séria, repleta de bibliografia. Um retrato -externo e interno-  do conquistador espanhol. Uma história que, com frequência, se desfoca e se reconta com narrativas variadas, todas elas carentes de rigor científico. Por isso, após ver Malinche, e admirar o trabalho investigativo do compositor, não consegui evitar reler a obra de Madariaga.

Está fora de propósito fazer nestas linhas um resumo desta obra, até porque a leitura, pausada e atenta, é necessária para entender Cortés e seu entorno Vale sim, apontar alguns aspectos a modo de destaque, pois são muitas vezes os que se tergiversam em narrativas recontadas e superficiais.

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