Susanna Tamaro: Alma do Mundo

Pablo González Blasco Livros Leave a Comment

Susanna Tamaro: Alma do Mundo Ed. Rocco, Rio de Janeiro, 1997. 288 págs.

Foi há muitos anos, um quarto de século, quando li por primeira vez este livro da Tamaro. Fui um pouco no vácuo e no entusiasmo após ler o primeiro dela que caiu na minha mão, e que me impactou: Vai aonde seu coração mandar, as cartas de uma avó para a neta rebelde. Depois desse primeiro, veio Alma do Mundo, e tudo o que lembrava dele é que era uma história muito dura. Com fundo, muito fundo, mas duríssima. Que tinha essência e que aproveitei está demonstrado nas fichas (anotações) que de alguns trechos encontrei no meu fichário e que incluo aqui, ao longo deste comentário. Lembrava da dureza, mas nada, absolutamente nada, da trama, da narrativa que era a ocasião para servir essa filosofia em estado puro.

Talvez por isso, desta vez, com ocasião da tertúlia literária, prestei mais atenção no argumento que, dito de passagem, é pura desculpa para apresentar a filosofia de vida: uma desesperada busca de sentido.

Walter, o protagonista, pilota a narrativa em primeira pessoa, o tempo todo. A perda de um amigo da infância, que sempre ficou presente, serve de overture à contundente dureza da obra. Assim descreve a ausência sentida quando passa perto da casa dele: “A mãe tinha-se esquecido de tirar a roupa que estava a secar, as calças e as camisas ainda lá estavam, penduradas na corda, fustigados pelo vento como bandeiras de um país desaparecido”.

E a seguir, o relacionamento difícil, quase trágico, com os pais. Um filho único que nunca sentiu-se querido nem desejado: “Com um pouco de sorte genética viria a ser tão alto como o meu pai, tão forte como ele. Então, poderia finalmente pôr-me à sua frente e dizer-lhe «odeio-te». Era o que sentia por ele desde que tinha memória de mim mesmo. Não acho que ele sentisse a mesma coisa, pelo menos até esse momento. Durante uma grande parte da infância, julgo que lhe fui totalmente indiferente. Por vezes um enfado, isso sim, mas apenas isso (…) O meu pai considerava-se tão perfeito que não conseguia imaginar, nem mesmo remotamente, que eu pudesse ser uma coisa diferente de uma fotocópia dele. Ele era o máximo e eu tinha de ser igual a esse máximo. Porque a grande, a terrível contradição é esta: o que os homens mais receiam é a diversidade, mas, apesar disso, continuam a pôr filhos no mundo. No entanto, por força das coisas, um filho é sempre diferente. Por isso, é veneno que uma pessoa mistura na sua própria comida”.

A mãe, que poderia ser um consolo, também não o foi, porque, instintivamente defende o pai: “Foi nesse dia que compreendi uma das leis da natureza, que não está escrita em parte nenhuma: se os filhos se portam bem, são do pai, se não satisfazem, passam a ser para toda a vida um apêndice da mãe (…) Afinal, ela foi a única pessoa com quem tive um mínimo de comunhão. Durante algum tempo, na minha infância, fomos uma ilha feliz, nós dois contra o mundo inteiro. O mundo era o meu pai. Eu era o consolo dela, a sua alegria, fui-o durante um período demasiado curto. Ela tinha-se ido embora e eu não lhe tinha dito adeus”.

Conclusões trágicas que vão tornando-se explícitas com o passar dos anos, ao sabor amargo das lembranças: “Já tinha percebido que, em nossa casa, havia uma bomba que não explodira. Estava sepultada sob toneladas de detritos. Esses detritos eram as palavras não ditas. Quanto a mim, sentia-me órfão desde que tinha nascido. Não conseguia sentir qualquer saudade (…) Meu pai bebia porque era um fracassado,  eu só precisava de uma ajuda para me conhecer melhor. Em casa evitávamo-nos um ao outro, éramos dois espelhos que não se podiam refletir”. E, no momento da morte do pai, do lado dele, o ápice da amargura: “As nossas lágrimas tinham temperaturas diferentes, formavam uma única mancha sobre a fronha. Eu respirava com força, ele, mais lentamente. No dia seguinte, morreu (…) A certa altura, a filha de uma internada veio ter comigo. – Gostava muito dele, não? – perguntou, tentando consolar-me. – Não! – gritei. – Odiava-o. Sempre o odiei. É por isso que estou chorando”

Walter prossegue no relato da história da sua vida, triste, miserável. E as lembranças se misturam com verdades, cruas muitas vezes, sobre o ser humano e a sociedade. “Nessa altura, houve pelo menos uma coisa que percebi: se alguém mata sem uniforme, é um assassino; se mata com uniforme, recebe cruzes de mérito. já nessa altura eu tinha um temperamento a tender para o especulativo (…) Com as pessoas demasiado sensíveis acontece muitas vezes uma coisa estranha: à medida que vão crescendo, vão-se tornando mais cruéis. Se alguma coisa mina a sua solidez, os anticorpos põem-se logo em ação. A violência e o cinismo são apenas isso, invertem a visão do mundo para dar força. Nunca me admirei ao ler a vida dos grandes criminosos, havia gente que exterminava populações inteiras e que, à noite, regava flores, comovendo-se com um passarinho caído do ninho. Em qualquer parte, dentro de nós, há um interruptor. De acordo com as necessidades, liga e desliga a corrente do coração”.

Em certo momento, pipocou uma frase que me era familiar. Fui conferir, e lá estava uma das fichas que copiei do livro há vinte e cinco anos…e que utilizei em outros escritos, em palestras, conferências. O legado do que semeamos, para o bem e para o mal: “Nessa altura, ignorava que as coisas que acontecem nunca são neutras. Podemos pensar assim, podemos até estar convencidos. Uma semente de trevo mantém intacta a sua vitalidade durante oitenta anos. O mesmo acontece com os factos, embora os cubramos com uma manta de indiferença, embora lhes sopremos para os escorraçar, ali ficam, quietos. São o germe de qualquer coisa que, mais tarde ou mais cedo, acabará por aparecer”.

Um relato ácido, de realismo contundente, um exame de consciência em voz alta, mas sem procurar culpados, buscando entender o sentido. “Na cidade, não conseguia encontrar um lugar que me provocasse o mesmo efeito, para onde quer que fosse havia demasiadas coisas que vinham ao meu encontro, coisas demasiado belas ou demasiado feias. O excesso desviava a profundidade dos meus pensamentos. Talvez seja uma estupidez dizê-lo, mas envergonhava-me mais dos meus sapatos do que das eventuais lacunas culturais. Há demasiado tempo que vivo como um urso, pensei, basta a modesta atenção de alguém para me provocar mal-estar”.

O relacionamento com pessoas de naipe variado, boêmios e artistas, gente de proceder escuro, é sua fonte de sobrevivência: “Em breve apareceria outro trabalho e depois mais outro, não era assim tão difícil fazê-lo, bastava tapar o nariz e esquecer que tinha cabeça”. Produz-lhe repulsa, mas é o que aparece. Este tempo de convívio -de coexistência- rendeu mais uma das minhas fichas antigas, contundente, sobre o egoísmo e a solidão: “A solidão era essa. Nenhum deles tinha a percepção do outro, sua situação se assemelhava à dos astronautas, que saem da nave para passear no espaço. Ao redor do corpo têm um super equipamento, com oxigênio, temperatura e pressão adequadas, entre o tecido e o corpo existe uma espécie de microcosmo. Do lado de fora, o silêncio e a escuridão que roçam o eterno. Era assim, as pessoas que eu tinha diante de mim pareciam ter feito a mesma coisa, entre elas e o que estava em volta havia um interstício: dali, provavelmente, retiravam o ar e o alimento. E era sempre graças a esse interstício que se defendiam do mundo circundante. No fundo, eu me dizia olhando-os, são os mais sinceros, não fingem que não estão sós. Por isso, talvez,  incomodem tanto. Ninguém gosta de ter jogada na cara a absoluta e tremenda solidão da vida humana. Para escondê-la, a gente se move e se agita desde o dia do nascimento até o dia da morte. Dança-se com as castanholas  e os tamboris para não ver o cadáver que vem à superfície, para que o cadáver não urre dizendo que estamos sós, que estamos todos desesperadamente sós. Pó em movimento, nada mais”.

A narração vai tomando corpo, esculpindo com nitidez as deficiências, nessa revisão nua da própria vida: “Durante anos e anos tinha vivido como um clone de plástico, esquecera-me do cheiro da terra e das suas estações, do ruído dos passos no chão gelado. Esquecera-me do instante tão breve em que se manifesta a alegria, o ser coisa entre as coisas criadas, respiração entre o que respira à nossa volta (…) Abdicara da verdade para viver na ilusão. De tudo o que tinha aparecido na minha frente contentara-me com o invólucro. Tinha agido como age a enorme maioria das pessoas, escolhendo a retórica em vez da persuasão. já sabia que isso tinha acontecido no preciso momento em que sonhara com a glória, no momento em que tinha querido que a diversidade se convertesse num sinal exterior, no momento em que acreditara que diferente e superior eram a mesma coisa”.

Enganado, ludibriado, não por outros mas por si mesmo, por faltar-lhe um rumo na vida. Eis uma sinceridade contundente, uma das marcar registradas nos relatos de Tamaro, tão necessária naquela época em que li o livro, como hoje, onde as distrações e enganos são procurados a la carte, chancelados pelas redes sociais, com os recursos da internet: “Andava, andava, e, ao andar, tentava colar os cacos. Tinha de colar mais de dez anos, o que eu colava não era um percurso, era um processo de lenta degradação. Em vez de construir ou semear, tinha dissipado, da lucidez tensa da poesia passara para a cama de uma rica enfastiada, tinha-me deixado usar por ela e por todos os outros. Pensava que era importante e era apenas um bobo. Com a minha ingenuidade, com o meu desejo de reparação, tinha sido apenas o fantoche ideal nas mãos deles. Para que eles se divertissem, estivera a um passo da morte (….) Agora sei que bastaria uma pessoa, uma só, para que o meu destino tivesse sido diferente. Bastaria um olhar, uma tarde passada com alguém, o vislumbre de uma compreensão”.

No capítulo final, a luz, o canto à liberdade: “E o homem que, em vez de andar com quatro patas, anda com duas. De quatro para duas tudo muda, o céu fica mais perto, as mãos ficam vazias: quatro dedos móveis e um polegar oponível podem agarrar tudo. E é a liberdade, o domínio do espaço, a ação, o movimento, a possibilidade de gerar ordem ou desordem”. E com ela, assumir a própria responsabilidade, sem eximir-se buscando culpados pelas desgraças da própria vida:  “Delegar, esse é o grande erro. Já passaram dois mil anos desde que Cristo desceu à terra e comportamo-nos todos como crianças, esperamos pela mamadeira. Se a mamadeira não chega, pensamos logo numa traição. Mas quem é que disse que Deus deve agir por nós? Ele deu-nos a possibilidade de escolher. Com isso manifestou o poder amoroso do criador. O bem, o mal, estão nas nossas mãos. Não há ninguém lá em cima a preparar-nos a mamadeira, a nossa existência não é a existência dos lactentes. Seria cómodo, claro, mas que significado daríamos às nossas vidas se tudo estivesse estabelecido desde o início?”.

Uma freira solitária num convento é o espelho onde Walter consegue se enxergar, e mergulhar na própria consciência: “A irmã tinha dito que a inveja é o medo de não se ser suficientemente amado”. Discussões iniciais que dão passo à reflexão serena, dura, profunda: “Tem de se ser estúpido? – Não – respondeu ela. – Tem de se ser humilde. Sabe – prosseguiu, olhando-me nos olhos – o grande erro é acreditar que a inteligência é um mérito nosso e quanto mais inteligente se é, mais se tende a acreditar nisso. A própria inteligência choca dentro de si o germe da superioridade. Mas superioridade em relação a quê? A quem? Não somos nós que criamos a inteligência. A inteligência é um dom, uma espécie de pequeno tesouro que devemos tratar com muito cuidado. Só nos é entregue, temos de a respeitar, confiar nela. Ninguém pode decidir ser inteligente, percebe? Ninguém pode pretender ser inteligente, tal como ninguém pode decidir «até que ponto» será inteligente. Bastava pensar-se nisso por uns instantes para barrar o caminho ao orgulho. Um dia ser-nos-ão pedidas contas da forma como a utilizámos”.

Da prepotência e a revolta, para a humildade que, já dizia Teresa de Avila, é a verdade: “Havia quatro cruzes atrás de mim, a cruz da minha mãe, a do meu pai, a cruz de Andrea e a da minha ambição. Estavam todos sepultados sob uma espessa camada de terra. já não precisava de fazer fosse o que fosse para demonstrar qualquer coisa a alguém, nem sequer a mim mesmo. Já sabia que todas as minhas ações tinham sido apenas reações, que todos os meus movimentos tinham existido por oposição à vontade de outros”.

Encontro, quase no final, outra frase que me é familiar. Mais uma daquelas fichas antigas, que copio aqui para encerrar este comentário, um mergulho quase existencial: “Desde o nascimento se ensina que a vida é feita para construir e isso não é verdade. Não é verdade porque o que se constrói cedo ou tarde se desmancha,  nenhum material é suficientemente forte para durar  eternamente. A vida não é feita para construir, mas para semear. Na ampla roda, da espiral do começo à espiral do fim, passa-se e espalha-se a semente. Talvez nunca a vejamos nascer porque pode despontar quando não estivermos aqui. Não faz mal. O importante é deixar de si alguma coisa capaz de germinar e de crescer”.

Construímos -talvez com a esperança dos aplausos e de apalpar o reconhecimento- ou semeamos? Bela reflexão, a modo de ponto final, neste livro que, mais uma vez, percebi ser duro, forte, mas real. O argumento, ao qual prestei atenção, é simples desculpa para essa filosofia da busca de sentido. Está servido o convite para mergulhar com o Walter nos porões da própria consciência!

Zena Hitz: Lost in Thought. The Hidden Pleasures of an Intellectual Life.

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Zena Hitz: Lost in Thought. The Hidden Pleasures of an Intellectual Life. Princeton University Press. 2020. New Jersey. 220 págs.

Chegou às minhas mãos, em publicação espanhola,  uma entrevista com Zena Hitz  professora de filosofia, pensadora e, pelo que rapidamente intui, uma dissidente da academia, inconformada com os moldes engessados que em nada ajudam na formação intelectual dos jovens….e dos menos jovens. Fui atrás do libro dela, encontrei somente a versão em inglês que li de bate pronto, e comento aqui em livre tradução, por dois motivos. O primeiro para servir de aperitivo nesta aventura do pensamento e da inteligência; e o segundo, para caso cair meu comentário nas mãos de algum editor comprometido, ver se decide publicar em português a obra da professora americana.

Para já, devo dizer que em muitos momentos lembrei do pensamento de Josef Pieper -O ócio a e vida intelectual- e, também, da contundente frase de Ortega que cito frequentemente, cada dia com maior vigor: a cultura é o que nos salva do naufrágio vital. São as ideias de sempre apresentadas com novos embrulhos para poder se comunicar. Isso é realmente importante, porque vivemos tempos onde não é possível apenas confiar no conteúdo do que transmitimos, mas é preciso cuidar as formas, a “interface” com o leitor, jovem, digital, inquieto, sem paciência para longos raciocínios.

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As Linhas Tortas de Deus: As fronteiras sutis da sanidade e a doença

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Los renglones torcidos de Dios. Diretor: Oriol PauloEduard FernándezBárbara LennieAdelfa CalvoPablo DerquiLoreto MauleónJavier BeltránFederico Aguado. Espanha, 2022. 152 minutos.

Este comentário -não me atrevo a chamar critica- era algo esperado, carta marcada na minha agenda mental. Um colega do colégio anda metido em assuntos de cinema, e vez por outra me escreve pedindo opiniões, como se eu fosse -e não ele- o esperto na matéria. Disse-me tempo atrás que estava buscando o modo de levar o livro de Torcuato Luca de Tena ao cinema. Buscava um diretor adequado, elenco, e todas essas variantes com as quais um produtor deve se defrontar.

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Franny & Zooey: Revisitando Salinger.

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J. D. Salinger: Franny & Zooey. Editora do Autor Ltda. Rio de Janeiro, 1970. 170 págs

Tinha lido este livro há mais de dez anos e, na época, fiz um comentário destacando como pessoas diferentes, podem mostrar o mesmo amor, também em diferentes formas. Mas todas verdadeiras. Voltamos sobre o livro, revisitando Salinger, um autor cult, raro, peculiar. O cenário agora é a Tertúlia Literária mensal. E a leitura do livro -assim como os comentários- sem perder de vista aquela primeira impressão que continua vigente, é enriquecedora.

Os diálogos entre os dois irmãos, e a escuta paciente da mãe, são o pano de fundo desta obra que o próprio autor, no mini prefácio, quase suplica ao editor que a publique, como se fosse um pedido do seu filho pequeno Mathew Salinger solicitando um sorvete de limão. Quer dizer, um capricho bem ao modo deste escritor tão peculiar.

Franny é a versão feminina de Salinger, uma espécie de apanhador no campo de centeio de saia. Uma contestadora que reclama de um mundo medíocre. Deixa isso claro ao namorado, que sente lhe escapa das mãos: “Você gosta de mim? Nem uma única vez você o disse na sua horrível carta. Odeio você quando quer bancar o supermacho e fica todo cheio de reticências. Não é que realmente o odeie, mas sou constitucionalmente contra os homens fortes e calados”. E acrescenta o autor: “Por vezes, tinha um trabalho infernal para esconder sua impaciência a respeito da inépcia do macho da espécie, em geral, e de Lane em particular (…) Uma garota que não só era extraordinariamente bonita mas, além disso, não pertencia ao gênero pulôver de malha e saia de flanela”.

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Living: Os sustos que nos acordam para a vida.

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Living. Diretor: Oliver Hermanus. Roteiro: Kazuo Ishiguro. Bill NighyAlex SharpAimee Lou Wood, Adrian RawlinsTom Burke,  Hubert Burton. UK. 2022. 102 min.

Sabendo que se trata da refilmagem de um clássico, assisto sem pretensões…e fico maravilhado. Contemplo a história construída por Kurosawa nos anos 50, agora em versão britânica, mas sem negar as referências: lá está o nome do grande diretor japonês, outros da  sua linhagem que carregam o mesmo sobrenome e, fosse pouco, convocam um prêmio Nobel, também nipónico- Kazuo Ishiguro- para organizar o roteiro. E para dirigir toda esta sinfonia, um diretor sul-africano, que é garantia de Commonwealth, sabor absolutamente britânico.

O resultado é um filme elegante, delicado, tocante, repleto de recados. E também um saca rolhas de reflexões: aquelas que vão se acumulando com os anos, as leituras, os escritos e, especialmente, com as vivências. Organizar essa enxurrada que acode à mente, enquanto contemplamos os fotogramas do filme  -tarefa nada fácil-  que me atrevo a alinhavar, desordenadamente, nestes parágrafos.

O argumento já tinha sido contado por Kurosawa: um funcionário público que gastou a vida, fazendo de conta que trabalhava, perdido entre papeis, processos que, mal ou bem, empurrava para outros departamentos. De repente chega a notícia: um câncer que lhe coloca um dead line (nunca melhor dito). E com o susto, um despertar para a vida, aquela que nunca viveu.

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Emmanuel Carrère: O Reino.

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Emmanuel Carrère: O Reino. Emmanuel Carrère: O Reino. Alfaguara, Rio de Janeiro, 2016. 440 págs.

Não costumo gastar tempo comentando livros que não recomendo. São tropeços que experimentei, guiado por alguma crítica duvidosa. E visto que eu já sofri o tropeço, não me agrada empurrar outros para deparar-se com a mesma lombada. Por isso, tinha desistido de comentar este livro, do qual fiz a seguinte anotação: Uma conversão, uma desistência, uma permanente hesitação, cercada por uma cultura notável -lendo de tudo, e de todos os lados, de Renan até Santo Agostinho- e uma dúvida persistente, como corresponde a muitos dos intelectuais franceses. A dúvida metódica de Carrèrre, não de Descartes. Mas no final, da na mesma. A desconstrução fruto de intelectualismo e cultura mal digerida, que faz ver as coisas com olhos saturados de racionalismo. Um processo onde se apalpa uma atrofia da humildade, que é o único caminho para descortinar uma lógica que transita num plano diferente: a lógica e Deus.

Mas revendo as anotações que destaquei durante a leitura do livro, pensei que sim, poderia ser útil um breve comentário, pois afinal é o caminho que qualquer homem pode sofrer, se carece dessa lógica acima sugerida. A conversão sincera de Carrère, e a queda posterior no niilismo, traz ensinamentos que podem iluminar este doloroso processo.

É preciso reconhecer que Carrère escreve com maestria, em descrições onde se misturam fatos externos, com o seu próprio interior, e talvez por isso transpira hesitação e dúvida. Na crítica desavisada que comentei, figurava um título sugestivo sobre o estilo do francês: uma mistura do eu literário com a realidade.

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Edith Eva Eger: A bailarina de Auschwitz

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Edith Eva Eger: A bailarina de Auschwitz Sextante; GMT Editores. Rio de Janeiro, 2019. 337 págs. (Título original: The Choice)

O prefácio que introduz este livro tocante, é uma ótima overture para a leitura: “A vida da Dra. Eger foi pontuada por tragédias. Ela foi presa em Auschwitz quando era apenas uma adolescente. Apesar da tortura, da fome e da constante ameaça de morte, conservou a liberdade mental e espiritual. Não se deixou abater pelos horrores que sofreu e saiu fortalecida pela experiência. Na realidade, sua sabedoria é resultado dos episódios mais traumáticos que viveu, e usar suas experiências para ajudar as pessoas a descobrir a própria liberdade. Nesse sentido, seu livro vai muito além de uma memória do Holocausto. Seu objetivo é ajudar cada um de nós a escapar da prisão da própria mente. De certa forma, todos somos prisioneiros, e a missão de Edie é nos ajudar a entender que, assim como agimos como nossos próprios carcereiros, também podemos nos tornar nossos próprios libertadores”.

A autora explicita como frequentar o passado, as experiências traumáticas, é o caminho para a própria construção. Um caminho que levou décadas para percorrer, mesmo estando em aparente liberdade e sendo uma sobrevivente: “Ao longo do tempo, aprendi que posso escolher como reagir ao passado. Posso me sentir triste ou esperançosa, posso ficar deprimida ou feliz. Sempre temos essa escolha, essa oportunidade de controle. Estou aqui, isso é agora, aprendi a repetir para mim mesma, sem parar, até o pânico começar a diminuir (…) Eu ainda não tinha percebido que meu silêncio e meu desejo de aceitação, ambos baseados no medo, eram maneiras de fugir de mim mesma. Nem que ao escolher não enfrentar diretamente a mim ou ao passado, eu ainda escolhia não ser livre, mesmo décadas depois de meu encarceramento. Eu tinha um segredo que me aprisionava”

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Leonardo Padura: “Como poeira ao vento”.

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Leonardo Padura: “Como poeira ao vento”. Ed. Boitempo, 2021. São Paulo 580 págs. (“Como polvo en el viento”. Tusquets. Barcelona. 2020. 658 págs)

Conhecendo a prosa cativante de Leonardo Padura, escalamos o seu último romance para a nossa tertúlia literária. Narrativa magnífica quando mergulha em romances com fundo histórico, como O homem que amava os cachorros para mim, sua obra prima. Também vale destacar Hereges. E  outras, no meu modo de ver, menos atraentes, como onde delega o protagonismo no inspector Mario Conde, com aquém não me alinho totalmente.

Mais uma vez, Padura aborda um tema muito pessoal, telúrico, com sabor da sua terra: os emigrantes cubanos que se dispersam -por um motivo ou outro- como poeira ao vento. Um romance longo, de leitura fácil -confesso que é difícil parar de ler- embora não faltem tropeços, lombadas molestas. Me pergunto -e aqui coloco o meu porém a esta obra de Padura- como alguém que consegue uma delicadeza impar para descrever a morte de um cavalo, nos serve incômodas grosserias nos atritos sexuais. A rigor, não precisaria desse apelo, pois não é isso que vende, pelo menos no caso do escritor cubano, que tem uma texto corrido de prosa mais do que superior. Uma deficiência que poderia ser evitada, tudo seja dito.

Os exilados cubanos, que no novo destino “não conseguiam deixar de bailar se o disc-jockey colocava uma música chegada de uma ilha da qual renegavam vinte e quatro horas do dia, mas da qual não queriam (ou não podiam) desprender-se”. Um pais -diz com elegante ironia referindo-se a USA-  onde era mais fácil e barato ser astronauta do que revalidar um título de doutor em veterinária, obtido em alguma universidade cubana.

A descrição das personagens é magnífica, transparente, uma radiografia de cada figura. Porque isso são as personagens de Padura, figuras singulares. A garota, filha de uma cubana que renega sua origem, tenta voltar às raízes que sua mãe odeia. Percebe, a jovem, uma secreta atração pelo cubano, quando na realidade não passa de uma nova iorquina com cidadania americana. O pai da garota, um argentino de ascendência judia,  que também abomina seu pais de origem, com exceção da seleção de futebol, os cortes de carne, e a sanfona de Piazzolla.

Vale o exemplo de um diálogo entre pai e filha:

-Vocês os argentinos, quando se juntam…..se fazem mais argentinos?

-É uma desgraça nacional. E cuidado, porque a segunda pessoa que um argentino quer detonar (eufemismo para substituir o verbo original, já que obviamente lei Padura em espanhol) é outro argentino. Porque a quem prefere mesmo detonar é a um uruguaio.

As personagens se alternam, em histórias paralelas, que arrancam de Cuba para chegar a USA, a Espanha, a outros lugares. Alguns fazem do seu novo pais, uma réplica da ilha caribenha. “Quando Marcos chegou à cidade, comprovou que os poucos nativos resistentes, se distinguiam colocando uma bandeira da União, em algum ponto visível da sua morada, para lembrar-se do pais onde estavam vivendo agora. Os centro-americanos, os porto-riquenhos, os venezuelanos, fugiam dali assim que possível, pois mal suportavam o peso do orgulho e a prepotência dos cubanos, que até morrendo de fome, se comportavam com seres superiores (…) A essência daquele bairro (Hialeah) é que ali era possível viver com um pé em território colonizado em USA e com ou outro em Cuba. Refugiados que se empenhavam em continuar usando dessa condição, e que se conseguiam falar inglês de forma fluente, se convertiam em pessoas de vantagem”.

A jovem, Adela, que é o início da história, junto com o seu noivo-marido, Marcos,  sente que é possível compreender os cubanos, mas nunca replicá-los, falta-lhe algo para ser o que eles sempre foram. “Vocês, os cubanos como minha mãe, passam o dia falando, mas nunca dizem tudo o que pensam”.

Tudo isso porque o grupo do qual arrancam -jovens rebeldes que vão se amoldando ao novo regime, ou migram da ilha- amigos que “com seu romanticismo e sua fé em ebulição, renegaram seu vanguardismo burguês, e se colocaram à disposição para construir obras funcionais e resolver as necessidades coletivas…..E, enquanto isso, foram pendurando nas paredes do seu estúdio fotos de Mao-Tse Tung (convenientemente substituída por outra com Ho Chi Minh), Jean Paul Sartre (em algum momento trocada por outra com Salvador Allende) ou com um sorridente Yuri Gagarin (onde anteriormente estava uma de Nikita Kruschev)”. Com esta descrição lembrei de Delírio Americano, livro que recentemente comentei neste espaço, onde por algum motivo não se fala de Padura, uma falha que também apontei.

Magníficas descrições da decadência cubana, gente “confinada em um apartamento que já teve um toque de graça, um ar de casa, e agora parecia um depósito de detritos: transbordando de frascos de remédios vazios, eletrodomésticos inúteis, móveis estripados, livros empoeirados, paredes sem memória da última vez em que receberam uma demão de tinta, ondas de fedor por dentro e por fora. O que fora seu lar agora lhe era apresentado como o prelúdio de todas as mortes, o panteão de suas memórias”.

E os emigrantes em busca de nova vida, querendo esquecer, sem conseguir, suas raízes. Como Dario, que “apenas algumas semanas antes de partir para o exílio, sob o inclemente sol cubano que bronzeava o couro, cavava no pátio da casa de Fontanar, decidido a desenterrar batatas-doces ralas para o almoço, sem chapéu ou camisa ou saber que havia cremes L’Occitane en Provence como aquele que já o perfumava e lhe dava a aparência de um tigre domesticado”. E que chegando a Espanha, a Barcelona, se esforçava por ser “mais catalão que os catalães e escondendo de si mesmo as suas origens agrestes, e ao mesmo tempo tentando não o dizer a si próprio, sabia muito bem que nunca seria um verdadeiro catalão (nem para ele nem para os radicais e irredimíveis catalães) e que realmente não estava interessado em ser aceito como catalão: porque, na verdade, ele só queria se tornar outra coisa, outro Dario, não importava se ele era catalão ou marciano, mas sempre mais longe do Dario original. Enterre o passado, conte os ganhos, nunca as perdas. Derrote qualquer indício de nostalgia (…) Apesar de tudo que sofreu, Dario nunca sentiu vontade de odiar, mas também não foi capaz de amar, muito menos de perdoar”.

Figuras tocantes, como Clara, Santa Clara dos amigos a chama Padura, que é quem une o grupo. Na verdade o unia no passado, e agora faz o que pode. Uma “competente graduada universitária, analfabeta tecnológica”, que vê partir os membros da sua família: “ por fim o jovem transpôs a barreira: a mesma barreira que em outras duas ocasiões e em diferentes layouts e salas daquele aeroporto ela vira transpor o marido e o filho mais velho, sempre com a sensação avassaladora de que os estava perdendo, que talvez os via pela última vez. Com a certeza de que na possível viagem sem volta levavam consigo mais que um pedaço de sua vida, uma parte de seu corpo, a cada partida mais diminuída por amputações radicais”

Os que permanecem na ilha, como Clara e Bernardo, “passaram a ter mais tempo, embora para a maioria o ganho fosse inútil, pois era um tempo vazio ou errático, distorcido, como se passasse por um relógio macio de Dalí”. E Bernardo, outra figura que o escritor apresenta com doçura, afirma em magnífico resumo: “O que nos aconteceu? Aconteceu tudo e sem nos pedir licença. Os sonhos agora são insônia ou pesadelos. Aconteceu-nos que perdemos. Este é o destino de uma geração – sentenciou, e recuperou seu copo com a mão já trêmula e com um só golpe bebeu a bebida-. E assim vamos, camaradas, irmãos de luta: de derrota em derrota… Até a vitória final!”

Loreta , por dar-lhe um nome entre muitos, figura tormentosa, azeda, quase nauseante, que “se sentia melhor rodeada de animais que lhe agradeciam a sua existência e carinho do que de pessoas determinadas a exigir-lhe cuidados, palavras, fidelidade, empenho? Loreta Fitzberg não gostava de Loreta Fitzberg nem da vida que levava, nem do meio que a rodeava, como Elisa Correa anos atrás, na encruzilhada mais sórdida de sua existência, tinha nojo de ser Elisa Correa e de viver no mundo. perigoso e decadente em que vivia, e por isso foi necessário tentar, de novo, uma nova encarnação? Ou, mais precisamente, um verdadeiro renascimento”.

As quase 600 páginas, riquíssimas na descrição de personagens, estão continuamente salpicadas de críticas a Cuba: não somente ao regime, mas ao modo de ser cubano, algo que Padura critica sem piedade.  “Não estamos na memória de ninguém e ninguém está na nossa memória. Somos e ao mesmo tempo não somos, e ainda levará muitos anos para começarmos a ser algo mais do que fantasmas. Vivemos a deplorável atitude cubana de colocar o que os outros pensam antes do que se prefere. Todos cubanos. Odiando-se, desde o início e até a eternidade… Irving sempre diz: em Cuba não importa que o sol brilhe, que não faça calor e que o dia esteja lindo. Em algum momento alguém vem e detona (novo eufemismo na tradução livre) tudo. Será um castigo histórico?”

E o regime? Uma desculpa pare um modo de ser negativo? O escritor coloca estas palavras em boca de Loreta, mas nota-se que saem de dentro dele: “Seria mais fácil colocar a culpa de tudo no comunismo… Mas como sempre digo, o comunismo é uma consequência, não uma causa. Uma consequência que pode agravar certas coisas, por muitas razões, mas a condição humana é a mesma em qualquer sistema, porque é eterna… Uma das poucas coisas eternas… O que está no fundo de tudo é a vaidade, a o mais falso orgulho, uma capacidade de fazer o mal que os domina… É uma doença nacional”.

Exilados, remanescentes, todos enfrentando seu passado e suas raízes. “No socialismo nunca se sabe o passado que te espera”, quer dizer, os sustos que levas quando o frequentas. E a frase de José Marti, o poeta da independência  de finais do XIX, que escrevia: “Prefiro ser estrangeiro em outros países do que no meu. Prefiro ser estrangeiro a ser escravo no meu próprio pais”.

Um livro que, tocando a realidade, é uma aventura fenomenológica da mão das personagens. Algo que Padura adverte na nota final, com a que encerramos esta viagem: “Como escritor, alimento-me da realidade, mas não sou responsável por ela para além das minhas vicissitudes individuais e do meu compromisso civil, como cidadão e como testemunha com voz, que apenas pretende deixar um testemunho pessoal do meu tempo humano”. Toda uma epopeia: cubana e, principalmente, humana!

Os Fabelmans: Um canto de amor ao Cinema.

Pablo González Blasco Filmes Leave a Comment

Os Fabelmans: Um canto de amor ao Cinema. The Fabelmans. Diretor: Steven Spielberg. Michelle Williams. Gabriel LaBelle. Paul Dano. 151 min. USA 2022.

Os Fabelmans: a mais recente entrega de um grande diretor. Um canto de amor ao cinema -ocorreu-me que seria uma espécie de Cinema Paradiso do diretor americano. Sua trajetória de vida, e de paixão pela sétima arte. Talvez com isto está tudo dito. Mas, obviamente, não resisto a comentar o recente filme de Spielberg. Aliás, nem quero fazê-lo, visto que já me identifiquei – e assim escrevi várias vezes- como um Spielberg-boy!

Acompanho de longa data a produção dele. Comentei amplamente vários dos seus filmes: O resgate do soldado Ryan, Cavalo de Guerra, A ponte dos espiões, A Lista de Schindler e Amistad. E, não contente com isso, tenho consciência de que lhe devo muitos royalties pelo uso que faço das suas produções no meu trabalho como professor de medicina. Cenas entrecortadas e comentadas que mostram a importância da vocação médica e do profissionalismo. Enfim, uma relação de longa data, uma amizade de há muito tempo, como dizia o inspector Renault a Rick (Bogart) no final de Casablanca.

Steve Spielberg que entrou em cena há muitas décadas com tubarões e arqueólogos, com extraterrestres e contatos de terceiro grau, mergulha na aventura do ser humano -um universo em amplo espectro, de cor púrpura até o sol como império- e desemboca definitivamente nos dilemas morais, onde me conquistou definitivamente. No ano passado, quando assisti a sua versão de West Side Story, pareceu-me perceber que era chegado o momento de fazer os filmes que sempre sonhou, os que marcaram a vida dele. Nesse mesmo comentário, apontei para Belfast, outro filme de lembranças, dessa vez por conta do britânico Kenneth Branagh. Os Fabelmans são como o  Belfast de Spielberg,  em afirmação que, embora evidente, pode pecar de simplista.

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Albert Schweitzer: “Entre a água e a selva”.

Pablo González Blasco Livros 3 Comments

Albert Schweitzer: “Entre a água e a selva”. Narrativas e reflexões de um médico nas selvas da África Equatorial. Ed. Unesp. 2010. São Paulo. 179 págs.

Um amigo, médico humanista, deu-me este livro de presente há já algum tempo. Agradeci e, como sempre faço, deixe ele repousar na minha estante, até encontrar o momento certo para me debruçar sobre ele. O fato, sempre encantador, de ganhar um livro, não significa necessariamente que tem de passar na frente da programação que, há muitos anos, faço das leituras que quero abordar nos próximos meses. Uma saudável quarentena na prateleira, deixa os livros mais apetitosos, faz decantar a vontade de lê-los, algo análogo ao vinho quando o deixamos envelhecer. Funcionou.

As memórias -breves, de apenas 4 anos- de Albert Schweitzer é o corpo deste livro. Quem era professor de teologia na Universidade de Estrasburgo, e músico especialista em Bach, decide, com 30 anos, estudar medicina, doutorar-se e parte com a esposa em 1913 para a Africa francófona, o Gabão, onde ficará 4 anos, praticando a medicina na selva equatorial. O trabalho notável nessa região, e as informações -científicas e também antropológicas- renderam-lhe o Prêmio Nobel a Paz em 1952.

E de fato, o que mais me impressionou foram as observações etnográficas onde revela o seu aprendizado durante a imersão na cultura africana. “Tive de aceitar, logo na primeira surpresa, a primeira aprendizagem africana: a falta de boa-fé dos nativos”. Mais do que falta de boa-fé, hoje diríamos falta de proatividade. Os nativos somente trabalham se lhes é absolutamente necessário. Vejamos este parágrafo que é contundente: “Não me sinto mais no direito de falar categoricamente da preguiça dos negros, desde que quinze nativos subiram o rio remando quase sem interrupção durante trinta e duas horas para me trazer um branco gravemente ferido. Há ocasiões em que o nativo trabalha assiduamente, mas só trabalha na medida em que as circunstâncias exigem. O filho da natureza não é nunca senão um trabalhador ocasional (…) Caso tenha aceitado um contrato e ganhado o suficiente para arranhar aquilo que tinha em vista, não verá mais motivo para continuar a sacrificar-se e voltará à aldeia, onde sempre encontrará casa e alimentos. O nativo não é preguiçoso mas sim um homem livre, daí ser um trabalhador ocasional”.

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