TÃO LONGE, TÃO PERTO.(In weiter Ferne, So nah!) Diretor: Wim Wenders. Otto Sander, Peter Falk, Horst Buchholz. Alemanha 1993. 141 min
Um filme sobre anjos é sempre uma novidade, embora o tema dos anjos tenha certa atualidade, e até prestígio. Mais pelo esoterismo que o cerca do que propriamente pelos anjos como tais. Hoje se fala de anjos como nunca, e se desconhece, cada vez mais, a realidade da natureza angélica já que, para tentar aproximar-se dela, alguma noção de filosofia e de metafísica se deveria possuir. Os conhecimentos da moda não primam pelo cultivo dessas ciências; daí o contraste, os paradoxos do mundo que substitui a filosofia pelas sensações, o sentido religioso pelo paranormal.
De qualquer forma é uma surpresa agradável o filme do diretor alemão Wim Wenders. Não pretende, nem por aproximação, ser um tratado teológico sobre os anjos mas também não cai na ficção fácil, no subjetivismo. Trata-se de um ensaio sobre a transcendência, âmbito que reúne o que vai além da materialidade, da própria vida. Deste modo, os anjos, a própria alma humana, o desejo de eternidade, o bem e o mal, harmonizam-se no filme em natural convivência com as realidades terrestres.
SINTONIA DE AMOR(Sleepless in Seattle) Diretor: Nora Ephron. Meg Ryan, Tom Hanks. USA 1993 101 min.
Os créditos desfilam na tela enquanto ouve-se, com nitidez, As time goes by e letreiros pipocam cintilantes. Um sabor Casablancaprepara o paladar e o ambiente perfuma-se com fragrâncias do romantismo eterno. A sintonia de amor traduz em linguagem nossa o drama que para os produtores era “O insone de Seattle”, molesta situação que repulsa fantasias. Até nos títulos gostamos de saborear os gomos de romantismo. Mas Sam perdeu o sono porque perdeu o motivo de viver: a esposa, mãe de um garoto, estopim da nossa história. O menino também não dorme, vai no vácuo do pai. E as vigílias infantis são, como tudo nas crianças, imaginativas, cheias de ocorrências. Por que não pedir uma nova mãe no programa da psiquiatra, conselheira sentimental dos carentes? Está armado o circuito para a nossa sintonia.
Estamos nas vésperas do Natal. Não se poupam ingredientes para tonificar nossa sintonia, que reclama a família como necessidade vital. Sem ela somos indigentes, parias da existência, a despeito de sucessos profissionais ou polpudas contas bancárias. Mercadoria rara esta da família, da família normal se entende. Algo simples, natural, aparentemente fácil mas, paradoxalmente, de difícil acerto hoje em dia. Os homens -pobres marionetes de uma cultura do prazer- estão despreparados para o desafio da família, e parece que lhes faltam recursos para a empreitada doméstica. Verdadeira aventura, em palavras de Chesterton, pois afinal escolhemos os amigos, os inimigos, mas não a família: essa nos vem dada, nascemos com destino assinado. E nesse palco temos de enfrentar a vida sem recorrer ao expediente, cômodo e mesquinho, de fugir.
Voltamos ao filme. O programa está no ar. A Psiquiatra coloca Sam na parede: “O que tinha sua mulher de especial?” O insone, absolutamente lúcido, responde com classe: “Quanto tempo temos de programa”. Bela esgrima de sentimentos. E a estocada que entra fundo: “Era uma multidão de pequenas coisas, milhões delas, que no conjunto significavam que tínhamos de ficar juntos. Fomos feitos um para o outro.” Não pude -nem quis, já que as associações nos enriquecem- evitar a lembrança de umas palavras que li numa entrevista de Franco Zefirelli, cineasta, artista, ourives do detalhe. Perguntava o jornalista sobre os motivos que estragam o amor. E Zefirelli, o homem da estética e dos pormenores respondia: “são estupidezes minúsculas, mal-entendidos diminutos, microscópicas preguiças que não se teve o valor de descobrir e de dizer, logo no início. É como o câncer: para salvar a saúde é preciso atacá-lo no começo”. Fechei o circuito desta nova sintonia, a das ideias, quando a voz de Sam produzia as primeiras interferências no coração de Annie, que gravitava, meio perdida, em outra frequência.
(Forrest Gump). Diretor: Robert Zemeckis. Tom Hanks, Robin Wright, Gary Sinise, Sally Field. USA, l994. l40 min
A
vida humana é um mosaico de paradoxos. Assistimos, neste final de século, a uma
proliferação de aberrações, novo renascimento das paixões humanas de sempre,
agora formatadas em linguagem atual e pajeadas pela multimídia. Concomitantemente, o grito à procura da
verdade, dos valores e da dignidade humana que encontra neles seu apoio consistente,
ecoa de modo ininterrupto. O homem procura a verdade, o bem, a felicidade, no
tempo em que se sente envolvido pela
sordidez do meio que ele mesmo criou.
O cinema, que quando bom é vida, reflete esta
procura; e também dá seus gritos de sobrevivência, reclamando para os homens
valores mais altos. Atravessamos momentos carentes de simplicidade, de amor, de
beleza e harmonia. E, vez por outra, nos chegam filmes como este que é todo ele
um canto à simplicidade, uma apologia da virtude, de que fazer o bem compensa.
A crítica, nem sempre justa, soube reconhecer a categoria de “Forrest Gump”,
agraciando-o com os principais Oscar do ano. Na verdade, não há como não gostar
deste filme. Gostar, todos gostam; explicar o atrativo requer algumas reflexões.
(Passion Fish) Diretor: John Sayles. Mary McDonnell, Alfre Woodard. Angela Bassett. USA 1992. 130 min.
May-Alice é uma atriz de seriados de TV que, após um acidente, fica paraplégica. Chantelle é a enfermeira contratada para tomar conta de inválida. O filme decola neste contexto para manter-se 2 horas num “mano-a-mano” entre as duas mulheres. Revoltas e limitações, dificuldades e tragédias, miséria e magnanimidade, enfim, todo o espectro dos sentimentos humanos se sucedem num filme muito bem conduzido.
“Se tiver problemas pessoais, neuroses, traumas, por favor não me conte, vá embora” -diz May-Alice. As personagens -e o espectador no vácuo delas- irão descobrindo ao longo do filme um velho ensinamento: o melhor modo de superar os próprios conflitos é cuidar dos problemas alheios. O homem problemático é, no fundo, um ser egocêntrico, que vive para seus dilemas e, por isso, acaba consumindo a vida sem vivê-la.
MINHA VIDA(My life) Diretor: Bruce Joel Rubin. Michael Keaton, Nicole Kidman, Hanig S. Ngor. USA 1993. 102 min
O tema da morte, da morte certa, é sempre difícil de enfrentar: na vida e, em consequência, no cinema. Por outro lado, contar com um referencial fixo, final previsível, -a morte que se aproxima- confere novas perspectivas a uma vida em declínio. Alteram-se as hierarquias e prioridades, surgem sentimentos adormecidos, superam-se mágoas que no contexto carecem de importância, arrancam-se atitudes heroicas. Claro está que tudo depende do modo como encara a morte aquele que está envolvido no processo. Vale a pena lembrar, por exemplo, de Bette Davis em Vitória Amarga (Dark Victory, l939) para compreender como as pessoas mudam perante a morte que surge inexorável.
A morte, como fato concreto, mesmo sendo um evento diário, torna-se único quando nos atinge. Acertado comentário o de Gustavo Corção, em suas Lições de Abismo sobre a surpresa que a morte concreta, do conhecido, provoca. Descreve que “o fenômeno mais trivial do universo, personalizado, toma proporções de maravilha. E todos -uma gente cansada de ir a Missas de sétimo dia- todos se admiravam do cadáver do Ferraz, como se estivessem a contemplar uma aurora boreal”
VEM DANÇAR COMIGO.(Strictly Ballroom) Diretor: Baz Luhrmann. Paul Mercurio, Tara Morice. Austrália 91991. 95 min.
O cinema australiano nos surpreende com esta fita que, sem grandes pretensões, torna-se um passatempo agradável, de excelente bom gosto e originalidade.
O argumento é simples: um concurso de dança com ritmo “latino”. O objetivo: encontrar a parceira ideal para o grande campeão, garoto rebelde que inventa “passos novos” nas danças de salão, provocando o escândalo dos jurados tradicionais.
Uma história de romantismo, que muito bem poderia ser a versão musical de Cinderela. Tudo embrulhado em continuas danças: boleros e rumbas, a clássica valsa, tangos e “passo dobles” formam o pano de fundo do filme que se assiste com agrado. Se a força dos musicais consiste em exprimir com canções o que com palavras resultaria pobre, em “Vem Dançar comigo” a magia do cinema vem servida em forma de dança.
ROMANCE DE OUTONO (Used People) Diretor: Beeban Kidfron. Shirley MacLaine, Marcello Mastroianni. Jessica Tandy, Kathy Bates. USA 1992. 120 min.
A tradução do título original para a nossa língua não costuma ser das empreitadas mais felizes. E sempre que comento isto me vem à cabeça o exemplo fatídico: A Noviça Rebelde“, onde com apenas três palavras se consegue assassinar “a priori”, nos créditos, a imagem de um esplêndido musical cujo recado é falar da poesia e do poder que a música exerce sobre o coração humano.
Mas existem exceções. Romance de Outono é uma tradução adequada daquilo que este filme encantador nos transmite. Muito melhor que o título original, Used people, já que em questões de amor e na vida, as pessoas não são descartáveis nem artigos de segunda mão. O amor é sempre jovem, ou melhor, é elemento remoçador. Quem é jovem tem capacidade de amar. O velho é tal, não pela idade cronológica, mas porque se aposentou no amor.
Romance de Outono é um filme bem conduzido, articulado sobre atores de primeira categoria. É simples no argumento, já que a temática, em si, não poderia ser complexa: uma espera de 23 anos para encontrar a mulher da sua vida. Uma espera serena, interior, um romantismo que muito tem do cavaleiro medieval que aguarda o momento oportuno para encontrar-se com sua dama. Espera que não paralisa mas que é ativa, ocupada, como os compassos de silêncio do instrumento que, mudo, aguarda o olhar do maestro para integrar-se na melodia da orquestra. Tudo tem seu tempo, sua harmonia. As precipitações somente produzem dissonâncias.
ETERNAMENTE JOVEM (Forever Young). Diretor: Steve Miner. Mel Gibson, Elijah Wood, Jamie Lee Curtis USA 1992. 102 min.
O amor é forte como a morte, diz o Livro Sagrado. Lembrei destas palavras vendo Mel Gibson correr embaixo da chuva, querendo parar o tempo.
Vivemos tempos de pragmatismo e o amor circula no mercado negro, de mão em mão. São apenas subprodutos amorosos, manuseados, com baixo teor de amor forte, com excesso de ganga. Tempos os nossos de desconfiança feroz, de levar vantagem, de toma lá dá cá. Fala-se muito de amor, e cada vez se desconhece mais o miolo dessa realidade, perdido numa selva de equívocos. Um lugar comum, ou -com perdão dos filósofos medievais- quase um flatus vocis, que nos abeira da indiferença.
As cenas de Eternamente Jovem nos falam de amor romântico e verdadeiro. De um amor que corre no contrarrelógio do tempo, e no contragosto dos sentimentos vigentes na moda. “Passe duas horas com quem você estaria uma eternidade”. São os outdoor da cidade anunciando a fita em lançamento. Tem seu encanto. Agradece-se uma lufada de romantismo, ar fresco, chuva de verão que ventile o ambiente abafado de egoísmo, de procura doentia do prazer.
O PRÍNCIPE DAS MARÉS(The Prince of Tides) . Diretor: Barbra Streisand . Nick Nolte, Barbra Streisand. USA 1991 132 min.
Neuroses e complexos estão na ordem do dia. Hoje, quem sabe mais do que nunca, porque carecemos de uma das melhores profilaxias: falar dos sentimentos, abrir o coração sabendo que alguém nos escuta e nos compreende. Não mudou a necessidade: mas hoje faltam “ouvidores”, e os poucos que há, esforçam-se o mínimo por compreender. Poucos são os privilegiados que têm quem lhes escute as mágoas com paciência, com um sorriso animador e aconchegante, ponto de partida para as correções necessárias.
As indigestões da vida requerem sua válvula de escape. A água parada fatalmente apodrece. Passar batido por emoções mal assimiladas -formigueiro de dúvidas e medos- sem ventilá-las, é perigosa bomba relógio. Algo assim como colocar uma rolha num vulcão, e viver num “faz de conta”, enquanto nas entranhas da personalidade vai se elaborando em silenciosa gestação o estouro inevitável. Erupção que será violenta ou muda mas, de qualquer modo, mutiladora. Essa costuma ser a origem dos traumas psíquicos que existem e se fazem notar, com maior ou menor virulência.
Barbra Streisand, atriz e diretora do filme, coloca a temática com felicidade, numa produção plasticamente bonita e de grande qualidade cinematográfica. Ajuda, sem dúvida, a interpretação muito acima da média de Nick Nolte. O príncipe das marés é uma obra bem trabalhada, cuidadosa nos detalhes, bom cinema. Sabe pôr à mostra o mundo interior do ser humano, com suas misérias e riquezas, sofrimentos e alegrias. Assim de complexo é o homem e confusos são os seus sentimentos. Somente as personagens de plástico -dessas que o cinema atual produz em série- carecem de problemas, porque não possuem interioridade, são ocos.
(Far and away). Diretor: Ron Howard. Tom Cruise, Nicole Kidman. USA 1991 136 min.
As lembranças que todos guardamos da infância constituem uma peculiar cultura do ser humano. São pedaços de sabedoria, lições de vida, que o tempo e as circunstâncias se encarregam de desempoeirar no momento certo, tirar brilho e torná-las úteis. Lá estão elas, amontoadas em algum recanto imaterial da nossa memória, sem ocupar espaço nem fazer barulho. Certamente, quando lá foram colocadas, muitas delas contra a nossa vontade, não fazíamos ideia da utilidade que, passados os anos, teriam. Na verdade, as lembranças da infância mal se percebem, nebulosamente, nos primeiros anos de vida. É depois, durante a vida adulta quando adquirem sua verdadeira dimensão. Projetam-se em perspectivas que tinham passado despercebidas.
As lembranças são fatos, coisas e, sobretudo, pessoas. Ou melhor, atitudes das pessoas. Pensava no Gerardo, amigo do meu avô, enquanto as cenas de “Um sonho distante” acudiam à minha cabeça. Colega de muitos anos, solteirão convicto, vinha nos visitar alguns fins de semana. Gerardo era um bom apreciador do vinho, do vinho fino, do “Jerez” como dizem na minha terra, e que, injustamente, os anglófonos encarregaram-se de divulgá-lo como “Sherry”. Jerez seco, semisseco, doce: cada um tinha o seu momento e os acompanhantes precisos. De tudo isto o Gerardo entendia, além de ser um papo excelente. Embrulhava as histórias em Jerez, ou o vinho em histórias, não sei; mas ambos os elementos caminhavam juntos. Gerardo bebia com moderação, pouco até, mas o fazia com gosto, saboreando, tirando partido de cada gole mínimo, reparando nas essências. Até nós, crianças, que tínhamos vedado o acesso a semelhantes requintes de adultos ficávamos entusiasmados e quase percebíamos no paladar o comentadíssimo sabor, com todos os seus epítetos e qualificações. Como se pode falar tanto de algo tão simples como é um vinho?