Claudio Magris: Danúbio

Pablo González BlascoLivros Leave a Comment

Companhia das Letras. São Paulo. 2008. 448 págs.

Tinha separado este livro faz tempo, anos atrás. E, na época, um amigo grande leitor me advertiu: não é um livro simples, um romance, uma guia de viagem. É denso, tortuoso. Mas tem seu encanto. Tomei nota, deixei-o na estante, em compasso de espera. Uma viagem prevista, com passagem pela Europa Central, foi o gatilho para enfrentar a leitura deste que se considera a obra magna de Claudio Magris.

Vale esclarecer que Magris é um escritor e professor, nascido em Trieste -o que significa fronteira com o resto da Europa- especializado em germanismo. Danúbio é sim, o relato de uma viagem com amigos ao longo do rio que cruza Europa, mas é sobre tudo uma excelente desculpa para transpirar cultura, com muitas variações do seu próprio mundo interior. Um livro, por tanto, de não fácil leitura, onde é preciso pinçar conhecimentos, sem pretender abranger o trajeto salpicado de informações que ultrapassam o leitor comum.

Eis a overture, para fazer-se uma ideia: “O esboço é o rascunho de um estatuto para a vida, se for verdade que a existência é uma viagem, como se costuma dizer, e que atravessamos a Terra como hóspedes. De qualquer forma, mover-se é melhor do que nada: você olha pela janela do trem que atravessa a paisagem em alta velocidade, oferece o rosto ao frescor escasso que desce das árvores no calçadão enquanto se mistura às pessoas, e algo corre e atravessa seu corpo, o ar penetra em suas roupas, o eu se expande e se contrai como uma água-viva, um pouco de tinta sai do tinteiro e se dilui em um mar de tinta. Para desviar o olhar do próprio poço profundo, nada melhor do que direcioná-lo para a análise da identidade do outro, para se interessar pela realidade e pela natureza das coisas (…) Santo Agostinho estava em parte errado quando nos exortava a não sair de nós mesmos: quem permanece sempre em si mesmo, fantasia e se perde, acaba queimando incenso para algum ídolo esfumaçado que surge dos escombros de seus medos, vazio e insidioso como os pesadelos que a oração noturna convida a desaparecer”.

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Agota Kristof: Trilogia dos Gêmeos

Pablo González BlascoLivros Leave a Comment

El Gran Cuaderno. Epublibre.   Editor digital: Titivillus. 125 págs..

La Prueba.  Epublibre .Editor digital: Titivillus. 126 págs.

La Tercera Mentira. Epublibre .Editor digital: Titivillus. 108 págs.

Encontrei na seção literária do jornal , um comentário sobre a Trilogia dos Gêmeos, de esta escritora húngara. Reconheço que o que tenho lido dos húngaros sempre me agradou. É o caso de Sandor Marai, ou  de  Magda Szabo, de quem li alguns livros. São intimistas, familiares, e examinam minuciosamente as personagens. Com este espírito aproximei-me desta trilogia mas o resultado não foi o mesmo. Encontro uma prosa fácil, dura, onde não se sabe muito bem se o relato é narrativo ou sonhado. Leio a versão em espanhol, por ser a que tinha disponível e traduzo aqui livremente. A verdade é que a escritora viveu fora da Hungria e escreveu toda sua obra em francês.

Os gêmeos Claus e Lucas são deixados ao cuidado da avó, que não mostra nenhum aprecio aparente por eles. Esse é o cenário do primeiro volume, O Gran Caderno, que é o mais palatável, quer dizer, onde a narrativa tem uma sequência lógica, sabe-se o que estamos contemplando. E os diálogos com a avó, peculiares, é o que permite conhecer com quem estamos lidando: a velha e, sobretudo, os garotos. “Durante o jantar, a vovó diz: 1Vocês já entenderam. Abrigo e comida têm que ser conquistados’-  Nós dizemos: ‘Não é isso. Trabalhar é difícil, mas ficar parado enquanto alguém trabalha é ainda mais difícil, especialmente se for velho’-  A vovó diz sarcasticamente: ‘Seus filhos da mãe! Quer dizer que sentem pena de mim?’ –  Não, vovó. Só temos vergonha de nós mesmos”

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George Orwell: As distopias do futuro, do passado e do presente

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“A Revolução dos Bichos”. Companhia das Letras. São Paulo. 2007 120 págs.

“1984”. Companhia das Letras, São Paulo, 2009. 383 págs.

Tropecei nas últimas semanas, com alguns artigos e comentários -incluída uma crítica de teatro- que traziam George Orwell à pauta. Foi o suficiente para retomar a leitura dos seus dois livros clássicos que, conforme parece, foram em dobradinha,  os dois livros mais vendidos nos últimos tempos: A Revolução dos Bichos, e 1984.

Orwell, um idealista nascido na Índia, no império britânico, sonhou com o socialismo, envolveu-se na revolução espanhola e se deu mal quando “a ficha caiu”. Na guerra civil espanhola, percebeu que os anarquistas estavam depurando o socialismo ideal no qual ele militava, e saiu com vida de milagre. A partir daí, voltou-se contra a ditadura soviética, e plasmou o seu pensamento nesses dois livros. Morreu em 1950, com 49 anos, pouco depois de publicar 1984.

A Revolução dos Bichos, publicado em 1945, no final da segunda guerra mundial, o cenário fictício é a rebelião dos animais -sempre oprimidos- buscando a liberação. Assim anota os gritos rebeldes: “Praticamente, da noite para o dia, poderíamos nos tornar ricos e livres. Que fazer, então? Trabalhar dia e noite, de corpo e alma, para a derrubada do gênero humano. Esta é a mensagem que eu vos trago, camaradas: rebelião (…) Fechai os ouvidos quando vos disserem que o Homem e os animais têm interesses comuns, que a prosperidade de um é a prosperidade dos outros. É tudo mentira. O Homem não busca interesses que não os dele próprio”.

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Adolescência: Um ensaio fílmico para desnudar um problema desafiante

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Adolescence. Direção: Philip Barantini. Criação e Roteiro:  Stephen Graham, Jack Thorne. Atores: Owen Cooper, Stephen Graham, Christine Tremarco, Faye Marsay, Ashley Walters, Erin Doherty, Amelie Pease. UK. 2025. 4 capítulos de 55 minutos

Já o disse em várias ocasiões. O meu gosto pelo cinema  -hoje o considero mais trabalho do que diversão-, e por sentir a necessidade de extrair ensinamentos que tornam a educação mais próxima e palatável, o que acaba cristalizando em comentários (não me atrevo a chamar críticas) coloca-me em frequentes desafios. Foi assim com esta série que está na crista da onda; é o caso destas linhas que são, como sempre, fruto da minha própria reflexão.

Nas últimas semanas, com destaque para umas reuniões de trabalho nas quais estive envolvido, encontrei-me com muitos velhos conhecidos: formadores, educadores, pensadores. Vários deles, nos intervalos, vieram me perguntar se já tinha visto Adolescência. Uma pergunta recorrente, que obviamente interpretei como um Touche….e que não me deixava opção. Assisti os quatro capítulos em duas sessões, enquanto me perguntava o que todos tinham visto na série britânica que levou a pedir a minha opinião. Porque as perguntas que me chegavam estavam embrulhadas nesse componente: junto com a recomendação, e até elogios, sempre se percebe que as pessoas querem saber o que você pensa. É o tributo, justo, de uma fama imerecida. Um desafio.

Enfrento os quatro episódios, esperando deliciar-me com uma série elegante, como muitas das que chegam com o aroma britânico. Sem dúvida, The Crown, que é do melhor que já vi até o momento; ou mesmo Downton Abbey. Mas eis que me encontro com um ensaio profundo, um mergulho desconcertante, onde a estética desparece, resta apenas o conteúdo, denso, estremecedor. Primeira dúvida que me assalta: por que a recomendação e os elogios, quando isto é um cruzado de esquerda?

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José Ortega y Gasset: Missão da Universidade

Pablo González BlascoLivros Leave a Comment

Editora UERJ. Rio de Janeiro, 1999. 129 págs.

Volto sobre esta obra clássica após quase três décadas. Lembro do entusiasmo que me provocou sua leitura quando estava concluindo o doutorado, e de que presenteei alguns dos meus mentores com um exemplar do livro. Anos depois, num mano a mano com um jovem médico que fez nosso programa de formação, escrevemos um artigo transpondo o pensamento de Ortega para a Educação médica. Nestes momentos em que me encontro envolvido na elaboração de um Programa de Pós Graduação, sinto necessidade de voltar às bases, repensar o que é, o que deveria ser a Universidade. Aqueles livros, que parece solicitarem a releitura, têm o seu momento oportuno.

Um pouco de história para centrar o tema e o livro de José Ortega y Gasset (1883-1955). Filósofo espanhol notável pela lucidez de suas ideias, Catedrático de Metafísica na Universidade de Madrid, escritor prolífico e colaborador habitual na imprensa, onde publicava muitas das suas obras e conferências. Escritor de prosa fácil, inteligível e sugestiva, é um dos maiores expoentes de filosofia espanhola e um verdadeiro paradigma entre os pensadores do século XX. No fim da década de 1920, apresentou aos alunos da Universidade de Madrid uma série de conferências que posteriormente foram transcritas e publicadas (1930, primeira edição) sob o título A missão da Universidade. Trata-se de uma exposição clara e didática dos aspectos que envolviam o ensino universitário da época. Na verdade as ideias de Ortega –como tantas realidades filosóficas- são atemporais: as questões que comenta são surpreendentemente atuais, sendo possível analisar à luz de suas considerações os problemas que enfrentam as instituições de ensino superior. As dificuldades apontadas pelo influente filósofo espanhol – assim como as que vivemos nos dias de hoje – poderiam ser resumidas em três palavras: desvio de função.

De volta às páginas do livro, que vou relendo com o mesmo entusiasmo, tropeço no início com um comentário sobre uma possível reforma universitária: “A reforma universitária não pode reduzir-se à correção dos abusos, nem mesmo consistir essencialmente na sua correção. A reforma é sempre a criação de novos usos. Os abusos são sempre de pouca importância. Um sintoma claro de que os usos constitutivos de uma instituição são corretos é que ela pode suportar uma boa quantidade de abusos sem danos notáveis, tal como um homem saudável suporta excessos que aniquilariam os fracos. Mas, ao mesmo tempo, uma instituição não pode ser constituída em bons usos se não tiver sido rigorosa e corretamente determinada na sua missão”. E a seguir, a sintonia que a Universidade deveria ter com o mundo em que vive: “A escola, como instituição normal de um país, depende muito mais do ar público em que flutua do que do ar pedagógico artificialmente produzido dentro dos seus muros. Só quando há uma equação entre a pressão de um e de outro ar é que a escola é boa”. Quer dizer, a Universidade tem de contemplar o mundo real, sem blindar-se dentro do seu recinto.

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Dietrich von Hildebrand: O Coração

Pablo González BlascoLivros 5 Comments

Cultor de Livros, S. Paulo, 2024. 199 págs.

Algum tempo atras anotei que a recente Encíclica do Papa Francisco, Dilexit-nos, dedica uma primeira parte para falar do coração humano, o que me levou a comentar um livro também lá citado, O universo religioso de Dostoievsky. Mas o tema do coração dá para muito, e revela-se particularmente importante nos dias de hoje. Dai prosseguir o estudo com esta obra clássica do pensador alemão, que enfrenta o assunto com audácia. Vale lembrar que se trata de um pensador católico, e escreve, em primeiro lugar para os que professam sua fé. Dai a defesa aberta e valente da importância do coração e da afetividade, tema que nem sempre foi contemplado pelos teólogos e filósofos católicos. Um belo complemento, no vácuo dos pensamentos do Papa Francisco.

Logo no início, Von Hildebrand adverte: “Por muitos anos, o tema das emoções, e o lado afetivo da natureza humana em geral, foi ou negligenciado pelos filósofos ou tratado superficialmente dentro do espectro de uma psicologia moral empirista que colocava os sentimentos na esfera do desejo subjetivo. Nem sempre foi assim. Se na Antiguidade razão e paixão eram contrapostas, já em Tomás de Aquino passa a existir um grau de reconhecimento e normatividade das respostas emocionais. Mesmo na filosofia de Aristóteles onde se diz na Ética a Nicómaco que ‘o homem bom não só quer o bem, mas também se regozija quando o realiza’, o coração tem um lugar rebaixado e desvalorizado”.

E continua destacando a importância da afetividade: “Uma felicidade somente pensada ou desejada (razão e vontade em ação) não é felicidade. A felicidade se torna uma palavra sem significado se a separamos do sentimento, única forma de experiência na qual pode ser vivida conscientemente”. E a seguir esclarece que “uma das razões para desvalorizar o âmbito afeito -para recusar em reconhecer ao coração uma posição análoga ao intelecto e à vontade- é identificar a afetividade com os tipos mais baixos de experiência afetiva. Consequentemente, o que se nega aos sentimentos corporais, estados emocionais ou paixões , acaba se negando também, de modo errado e injusto, a experiências afetivas como a alegria , o amor profundo, o entusiasmo nobre (….) A variedade de experiências dentro do âmbito afetivo é tão grande que seria desastroso encará-lo como algo homogêneo”.  

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André Maurois: Napoleão

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Ed. Salvat.  1985. 183 págs. Epublibre Editor digital: Titivillus. 2019

Consta-me que os franceses, e muitos europeus, consideraram Napoleão, o filme de Ridley Scott, uma afronta por tratar o Imperador sem respeito, como se fosse um cômico de circo ou uma personagem de gibi (palavras textuais de uma crítica que, no seu dia, chegou até mim). Assisti ao filme, e não me desagradou; aliás, encontrei momentos geniais, fora uma interpretação magnífica de Joaquin Phoenix. Um ator especializado em figuras inclassificáveis, como o Coringa, e….como Napoleão.  

Lembrei-me de uma biografia de Napoleão que li há muitos anos, de um autor alemão, Emil Ludwig, onde ficava muito claro a extravagante e genial figura do Imperador Francês. Por exemplo, quando observa a batalha do alto de um morro, e consulta o relógio comprovando que o vidro quebrou-se: “Ou minha mulher -Josefina- morreu, ou então me é infiel”. Sem mais. E continua comandando o ataque. Quer dizer, mesmo com a irritação provocada pelo filme -que recomendo- Napoleão não era um individuo previsível, by the book.

Assim sendo, decidi consultar os acadêmicos franceses, e me fiz com uma biografia de Napoleão, escrita por André Maurois, de quem ficou-me uma ótima impressão de seriedade quando li, há quase 50 anos, a biografia de Disraeli. Um francês erudito, falando de outro francês: para evitar vieses. E o primeiro que me surpreendeu foi a extensão: menos de 200 páginas e, além do mais, ilustrada. De fato -pensei- para fazer uma boa biografia, não é preciso escrever uma enciclopédia. Basta ater-se aos fatos, e encontrar as interpretações acertadas da História, e da personagem que se estuda. O exemplar que consegui é em espanhol, de modo que as citações que coloco, são em livre tradução que, imagino, não desgostariam a Maurois.

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Taylor Caldwell: Médico de Homens e de Almas

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Ed. Record, 1978.  700 págs.

Faz muito tempo, bastantes anos, que este livro circula à minha volta, sempre através de comentários de amigos, pacientes, enfim, de todos os que sabendo da minha profissão, querem de algum modo ajudar-me na inspiração com o exemplo do médico evangelista, Lucas. Mas, o fato é que nunca me decidi a enfrentar a leitura. Até que agora não tive mais como fugir: um grande amigo, colega de turma, também escritor, simplesmente me entregou um exemplar. “Gostei, quero saber sua opinião”. Não havia como negar-se; enfrentei as 700 páginas nas férias do final de ano.

Logo no prefácio a autora confessa ser este livro um projeto pessoal da vida dela, no qual trabalhou muitos anos: “Meu marido e eu lemos literalmente mais de mil livros sobre Lucas e seus tempos, e recomendamos todo tipo de leitura relacionada. Se o mundo de Lucas parecer espantosamente moderno a algum leitor com implicações modernas, realmente isso se verifica”. E continua: “Assim, a história de Lucano, ou São Lucas, é a história da peregrinação de todos os homens através do desespero e das trevas da vida, através do sofrimento e da angústia, através da amargura e da tristeza, através da dúvida e do cinismo, através da rebelião e da desesperança até os pés e a compreensão de Deus. Essa busca de Deus e da revelação final é a única significação na vida dos homens. Sem essa busca e essa revelação, o homem vive apenas como um animal, sem conforto e sem sabedoria, e sua vida é inútil, seja qual for seu grau de poder e nascimento” Para concluir citando a Epicteto: “Seguramente Deus escolhe seus servos ao nascerem, ou talvez antes mesmo do nascimento.”

Esse é o objetivo da autora, e o propósito desta narrativa. E a denomino assim, porque não é uma biografia de Lucas, mas um romance, que certamente tem base histórica pela muita pesquisa. Esse registro desperta certa advertência, pois aborda-se uma personagem cujos escritos bíblicos têm sido amplamente estudados. Mas visto como um romance, onde a maior parte do livro centra-se na suposta vida pregressa de Lucas -a busca de Deus, como diz Caldwell- pode se ler com descontração. Foi o que eu fiz. Desfilei pelas páginas, como saboreando um romance.

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Para além do Oscar 2025: Os filmes ocultos… que não desfilam na passarela

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Todos os anos, nestas datas, sei que vai chegar a pergunta inevitável…..por vários caminhos: E do Oscar, o que você recomenda? É o imposto a pagar quando, de modo imerecido, você cria fama de crítico de cinema. Eu não me considero um crítico de filmes, mas apenas um amante do cinema, que utilizo como recurso pedagógico, nas minhas empreitadas docentes. Principalmente na educação médica, para mostrar aos médicos o que é o ser humano -um detalhe que, com muita frequência, acabam esquecendo. Nesse registro situam-se a maioria dos meus livros, incluído o último que publiquei.

Não posso dizer que vi todos os filmes elencados para o Oscar 2025. Mas dos que assisti até agora, que foram bastantes, a pergunta que surge é: o que sobra de tudo isto?  Coloca no liquidificador, bate com parcimônia, para obter um suco… medíocre, com sabor inidentificável. Alguma surpresa agradável ao paladar, como Setembro 5, magnífico roteiro para contar a tragédia das Olimpiadas de Munique, 1972, desde a perspectiva jornalística. Um festival tutti-frutti, com um elenco de luxo em Conclave, e um argumento que não consegue abranger o tamanho imenso dos atores (Fiennes, Tucci, Lithgow, Castellitto) -e da atriz, Isabella Rosselini que tem o mesmo olhar da mãe, Ingrid Bergman, já madura. Um musical muito feminino, com bruxa verde e  garota arrogante, em Wicked.  E, no meio do suco, quase engasgo com um pedaço de filme que dá um recado poderoso sobre as paixões humanas -egoísmo insaciável, vaidade doentia- mas….embrulhado em papel de jornal indigesto: A substância.

Isso resume o cinema de 2024? Não, certamente não foi isso. Tem os filmes ocultos, que não fazem barulho -sem nenhuma pretensão do Oscar- alguns de imensa categoria. Revendo minha lista de filmes assistidos -que é material de trabalho, não de diversão- encontro vários dos quais não tive oportunidade de falar. Por isso, agora, vendo o que sobrou do Oscar 2025, sinto-me na obrigação moral de comentá-los brevemente. Um dever para comigo mesmo, e para com o bom cinema, que sempre admirei. É possível que alguns dos filmes que listo a seguir, sejam de produção anterior, de 2023, embora assisti no ano passado. Mas não vou me ater a esses detalhes. São filmes que merecem ser elencados para que o suco anódino do Oscar não atrofie nosso paladar cinematográfico. É desses que quero falar.

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Betty Smith: Uma árvore cresce no Brooklyn

Pablo González BlascoLivros 1 Comments

Verus Editora, 2021. 532 págs.

Entregaram-me este livro, na versão espanhola, acompanhado de uma simples frase: Eis um livro encantador, emigrantes em Nova Iorque, vistos pelos olhos de uma garota . Sem mais. E pensei que os meus comentários de livros -esta semana alguém advertiu-me novamente- são por vezes extensos demais. É possível que mais do que animar as pessoas a lerem livros, acabem desanimando. Algo assim como “muita areia para o meu caminhão”, ou tantas árvores que não conseguem enxergar o bosque.

Li a árvore que cresce no Brooklyn, e gostei. Um livro muito feminino porque, como já me foi dito, a lente que filtra o relato, são os olhos de uma menina quase adolescente. Francie. De fato, ai está o encanto do livro, e da árvore, que era amiga da gente pobre. Os emigrantes são irlandeses, que mantem seus costumes e sua religião, no meio da pobreza. Vão à Missa no domingo, “alguns até as seis da manhã, o que tinha seu mérito relativo, pois tinham ficado acordados ate de madrugada e após a primeira Missa, absolvidos de todo pecado, voltavam para casa e dormiam profundamente”.

Francie é a ancora de toda a narrativa: “Uma mulher grávida estava sentada pacificamente em uma cadeira de madeira dura enquanto aproveitava o calor do meio-dia e observava a agitação da rua. Parecia guardar o mistério da vida (…) Francie lembrou-se da surpresa que teve no dia em que sua mãe lhe disse que Jesus era judeu. Sempre acreditei que ele era católico. Mas sua mãe sabia muito, ela lhe disse que para os judeus ele era uma dor de cabeça, um garoto que nunca trabalharia como carpinteiro, que nunca se casaria, nem teria uma casa ou uma família própria. E além disso, os judeus pensavam que seu Messias ainda não havia chegado, foi o que sua mãe disse. Com esses pensamentos na cabeça, Francie parou na frente da judia grávida.  ‘Acho que é por isso que os judeus têm tantos filhos’, ela disse para si mesma. Agora entendo por que eles ficam tão parados… eles estão esperando. E é por isso que elas não têm vergonha de ganhar peso e têm uma postura tão digna quando estão grávidas. As mulheres irlandesas, por outro lado, sempre parecem envergonhadas. Deve ser porque eles já sabem que nunca darão à luz o menino Jesus, mas sim outro Mick. Quando eu crescer e descobrir que estou grávida, vou lembrar de andar devagar e com orgulho, mesmo não sendo judia”.

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