Comentários da Tertúlia Literária sobre o livro Novelas Exemplares
Comentários sobre o livro Novelas Exemplares de Cervantes na Tertúlia Literária realizada em 22/08/2016.
Por Adalis Cazmala.
Comentários sobre o livro Novelas Exemplares de Cervantes na Tertúlia Literária realizada em 22/08/2016.
Por Adalis Cazmala.
(Fúsi -Virgin Mountain-), 2015. Diretor: Dagur Kári. Gunnar Jónsson, Sigurjón Kjartansson, Arnar Jónsson, Ilmur Kristjánsdóttir, Margrét Helga Jóhannsdóttir, Franziska. 94 min.
Encontrava-me almoçando com um jovem colega no restaurante dos médicos do hospital quando me abordou um outro médico. Hesitou, olhou o meu nome bordado no avental, certificou-se de que era eu a pessoa que ele suspeitava. Apresentou-se, e rapidamente entendi de quem se tratava. Tínhamos trocado e-mails, escutei-o falando no rádio e até mandei uma mensagem ao programa. Mas era a primeira vez que nos víamos ao vivo. “Que coincidência -disse-me. Estava pensando em lhe pedir para escrever uma dessas suas críticas de filmes para colocá-la no nosso site de Slow Medicine”. Sugeriu-me algum filme, mas subitamente “Desajustados” veio à minha mente, e lhe fiz saber: “Boa ideia. Veja como consegue atrelar o filme aos nossos princípios”.
Naquele momento eu não tinha nenhuma ideia racional de como conectar este filme singular com a prática da medicina artesanal, centrada no paciente, que visa qualidade de vida e não apenas resolver problemas que, dito de passagem, muitas vezes não tem solução. Uma medicina que transpira humanismo; essa é a conexão entre o colega e eu, pois temos posturas profissionais semelhantes, e tentamos -com muito esforço e modesto sucesso- fazer escola, divulgar essa atitude médica. Mas encontrei um bom motivo para comentar -pare refletir escrevendo, que isso são as crônicas de cinema- este filme Islandês que me marcou e me deixou pensando. E me desafiando, porque não encontrava o fio certo para costurar as reflexões que despertou em mim.
Joseph Fadelle: “O Preço a pagar por me tornar cristão”. Paulinas. São Paulo, 2015. 310 pgs.
Eis um testemunho comovente que faz pensar. E muito. Um jovem soldado iraquiano, muçulmano, é forçado a dividir a hospedagem da caserna com outro soldado cristão. Lutam por uma causa comum, mas a motivação e as crenças são diferentes e, por conta do ambiente cultural, impossíveis de se misturar: como água e óleo. As conversas com o companheiro ao qual se afeiçoa, as perguntas que ele lhe faz, os silêncios prolongados do interlocutor, levam Mohammed até a conversão. Aí começa a sua aventura, onde terá que enfrentar a família, as raízes, a confortável posição social e a perseguição aberta, incluída a tortura e o cárcere. Esse é o preço a pagar para tornar-se cristão. Um preço que pode exigir dele a própria vida, assim como a da sua mulher e filhos que seguirão o seu caminho.
Uma história que poderia parecer ficção se não fosse real, tal é o teor do relato, tocante e assustador que alinhava ao longo destas 300 páginas. Não é um homem que renega das suas crenças, mas que descobre um complemento maior que abraça e engrandece sua existência: “Desse modo, tenho na cabeça todos os nomes que o Alcorão dá a Alá. Conhecem-se noventa e nove: Eterno, Inconcebido, Único, Inacessível, Firme, Invencível, Glorioso, Sábio, Benevolente, Misericordioso, mas também Vingador… Em contrapartida, também existe outro nome, o centésimo, que ninguém conhece. Mas eu tenho a impressão de que hoje descobri este nome misterioso e desconhecido de Alá: é o Amor”.
Theodore Dalrymple: “Nossa Cultura ou o que restou dela”. E Realizações. São Paulo. 2015. 400 pgs.
O autor que está por trás do pseudónimo é Anthony Daniels, psiquiatra e escritor inglês, com experiência profissional em quatro continentes, incluídos trabalhos em prisões e hospitais de bairros pobres. A presente obra reúne uma coletânea de 26 ensaios, resultado das reflexões que o seu trabalho profissional lhe proporcionou ao longo do tempo. Uma atividade que o colocou junto a pessoas que são, nas suas próprias palavras, “cobaias da engenharia social parida no conforto das universidades pela elite politicamente correta e progressista”. Basta essa introdução para adivinhar o tom crítico que o escritor inglês emprega nos seus escritos.
O desenrolar dessa introdução não se faz esperar: surge nas primeiras páginas. “A fragilidade da civilização foi uma das grandes lições do século XX. Era de se esperar dos intelectuais – de quem imaginamos que pensassem mais longe e com maior profundidade- que identificassem as fronteiras que separam a civilização da barbárie. Ledo engano. Alguns intelectuais abraçam o barbarismo, enquanto outros permanecem indiferentes, ignorando-o. (…) A civilização precisa de conservação tanto quanto de mudança. Nenhum ser humano é suficientemente brilhante a ponto de sozinho poder compreender tudo, e concluir que a sabedoria acumulada ao longo dos séculos nada tem de útil. (…). Os intelectuais têm que perceber que a civilização é algo que vale a pena ser defendido, e que um posicionamento hostil diante da tradição não representa o alfa e o ômega da sabedoria e da virtude. Temos mais a perder do que pensam”.
Os intelectuais politicamente corretos são alvo direto e constante das críticas de Daniels. “O intelectual se eleva acima do cidadão comum, que ainda se agarra quixotescamente aos padrões, preconceitos e tabus. Diferentemente dos outros, ele não é mais um prisioneiro de seu passado e de sua herança cultural; e prova a medida da liberdade de seu espírito em função da amoralidade de suas concepções”.
James Hilton: “Adeus Mr. Chips”. Record. Rio de Janeiro. 1969.90 pgs.
Quando vi o filme, com 12 anos, nem sabia que existia um livro por trás desta história comovente. Foi numa tarde de primavera, depois de fazer (não me lembro se com sucesso ou não) um exame de piano. Estava com os meus pais e o filme passava no cinema em frente do Real Conservatório, na Praça da Opera, em Madrid. Foi sem planejamento, de repente. “Olha, uma nova versão de Adeus Mr. Chips. Lembras daquela com o Robert Donat? -perguntou minha mãe ao meu pai. Eu assisti o diálogo sem muita supresa: ela sempre falava desse ator, que também tinha feito A Cidadela. A próxima sessão começaria em pouco menos de uma hora: o tempo para um lanche rápido, e instalar-se num bom lugar. Gostei do filme -era um musical-, gravei definitivamente a imagem do Peter O’Toole como o professor ideal, um velhinho simpático e amável que é conquistado e transformado por uma garota vanguardista.
Passaram anos até descobrir o livro de James Hilton que li de uma tacada. Vi também a versão de 1939, com Robert Donat. E revi, várias vezes, o musical com Peter O’Toole e Petula Clark. O livro é uma mistura de ambos filmes; talvez deveria dizer o contrário, mas é bom lembrar que para mim o filme chegou antes, muito antes. Agora, na tertúlia literária deste mês, sugeri sua leitura e aguardei as reações.
“Li o livro rapidamente. São menos de 100 páginas. E quando acabei me perguntei: é só isso? Vou ler de novo. Daí, na segunda leitura, caiu a ficha: é como a nossa vida, sempre esperando algo espetacular, mas o que temos é isso. Como Mr. Chips”. Um comentário encantador que abriu nossa reflexão conjunta. Seguiram-se outros fenomenais: “Fui no sebo comprar o livro. Vi o nome da proprietária original e a data…E pensei: eu tinha 3 anos quando ela leu este livro! E depois a textura das páginas, que me transportou até a minha infância. Os homens jogavam baralho, as mulheres conversavam, as crianças liamos livros…com páginas dessa textura”.
Kristin Hannah: “O Rouxinol”. Ed. Arqueiro. São Paulo. 2015. 425 pgs.
Vez por outra, deparamo-nos com uma crítica literária que nos prende. Não aquele texto padrão nos cadernos de cultura dos jornais, com o confete dos intelectuais de plantão. Assim se apresenta a obra que vai ser lançada, que é preciso promover, politicamente correta. Deve ter muito de matéria paga nesses cenários. Ou então do best seller de turno, ou da obra do mais recente prêmio Nobel que estava até o momento num canto escuro da cultura. Tudo isso tem formato desenhado, conseguimos cheirar a distância, e a mim, particularmente, me repele convencendo-me de que não devo ir atrás desse livro. Ao menos, nos próximos anos. O tempo dirá se merece todos esses elogios e, se de fato, é uma obra emblemática. O tempo é a enzima que catalisa o processo de qualidade, instalando entre os clássicos algumas obras literárias, e deixando no esquecimento a maioria delas.
Mas, algumas vezes, um comentário singelo, sem pretensões, com um rápido esboço do argumento e das personagens, me cativa, espicaça-me, me faz ir atrás. Se a esta curiosidade sadia, associamos a facilidade em adquirir livros através da internet, temos entre as mãos, em poucas horas, o produto que despertou nossa atenção. Assim foi com o Rouxinol.
Um livro sobre duas irmãs durante a Segunda Guerra Mundial, na França ocupada pelos alemães. Contam-se muitas coisas, mas as duas mulheres, Vianne e Isabel, são o eixo narrativo, num mano a mano de grande tensão. De temperamentos diferentes, encontram-se também em posições divergentes frente ao inimigo invasor. “Essa era a diferença essencial que sempre existira entre as duas. Vianne seguia as regras, Isabelle era a rebelde. Mesmo quando eram meninas, em meio à dor e à tristeza, as duas expressavam as emoções de forma diversa. Vianne caiu em silêncio depois da morte da mãe, tentando fingir que o abandono do pai delas não a magoava, enquanto Isabelle tinha chiliques e esperneava para chamar a atenção. A mãe delas tinha jurado que um dia as duas seriam melhores amigas. Nunca tal previsão parecera menos provável”.
Honore de Balzac: “Eugenia Grandet”. Abril Cultural. São Paulo, 1971. 230 pgs.
A tertúlia literária mensal oferece a possibilidade de poder reler os clássicos, desfrutar com eles, continuar aprendendo. Desta vez o convocado foi Balzac, o que significa um mergulho vital nas paixões humanas. Todas, descritas com minúcia, encontram-se em Balzac –dizia-me certa vez um amigo. E assim é, independentemente de onde o escritor francês situe a ação. Na corte, entre os aristocratas ou, como o caso que nos ocupa, nas províncias, lá onde encontramos “existências tranquilas na superfície, e devastadas secretamente por tumultuosas paixões”, e onde “uma moça não põe a cabeça à janela sem ser vista por todos os grupos desocupados”.
Mas a viagem ao interior do homem e o encontro com as paixões, não possuiriam a força que Balzac proporciona, não fossem as primorosas descrições que perfilam as personagens. Os comentários surgidos na nossa tertúlia ilustram essa característica. “Não prestei muita atenção ao argumento porque dediquei-me a saborear as descrições, a degusta-las” –dizia alguém. E outra: “Na verdade Eugenia é um papel secundário, porque o protagonista é o velho avarento, o pai dela. Talvez porque está muito bem desenhado”.
Sim, as descrições são precisas; a do Grandet é definitiva. “Os olhos do velho Grandet, aos quais o metal amarelo parecia ter comunicado o seu matiz. O olhar de um homem acostumado a tirar de seus capitais um juro enorme adquire necessariamente, como o do libertino, o do jogador ou o do cortesão, certos hábitos indefiníveis, movimentos furtivos, ávidos, misteriosos, que não escapam aos correligionários. Essa linguagem secreta constitui de certo modo a maçonaria das paixões”. Li essa frase há muitos anos e a guardei, porque explica de modo categórico como se encontram e entendem os que padecem as mesmas paixões, as limitações, enfim, os “correligionários” em baixezas e servilismos.
Donna Tartt: “O Pintassilgo”. Companhia das Letras. São Paulo. 2014. 722 pgs.
Comprei o livro – e até o recomendei antes de lê-lo – pois deparei-me com duas críticas, de fontes confiáveis, que o elogiavam. Um Premio Pulitzer –que às vezes não quer dizer muita coisa, outras sim- e mais de 700 páginas na minha frente
Um garoto de 13 anos que perde a mãe na explosão de um museu que é parcialmente destruído. A ele, um dos sobreviventes, resta-lhe como saldo uma obra do museu, e um endereço. A obra é “O Pintassilgo”, a pequena tela do pintor flamengo Carel Fabritius (1622-1654), discípulo de Rembrandt e mestre de Veermer, que também morreu vítima de uma explosão, e aqui temos a ligação afetiva com o argumento do Livro. O endereço é a desculpa para continuar uma história… cheia de buracos, insossa.
Passadas as primeiras cem páginas continuei sem encontrar o argumento, ou melhor, o propósito da premiada autora, onde queria chegar. O adolescente que se debate entre a saudade –natural e compreensível- da mãe ausente e o quadro que guarda como um tesouro, escondendo-o entre as suas pertenças. “Cada novo evento –tudo o que fizesse pelo resto da minha vida- ia apenas nos separar mais e mais: dias dos quais ela não fizera parte, uma distância cada vez maior entre nós. A cada novo dia, pelo resto da minha vida, minha mãe ficaria mais longe”.
Mas, o que mais? Onde está a trama que prende, aqueles comentários que sempre se colocam na orelha do livro, vindo de “críticos afamados”, e que afirmavam não conseguiam deixar de ler o livro? Eu, confesso, por vezes mal podia continuar porque não encontrava nada. Ou melhor, encontrava sim algo que me irrita profundamente. Um adolescente de treze anos que demostra a cultura de um curador de museu de Nova York. Absolutamente inverossímil.
(A man for all seasons) Diretor: Fred Zinnemman. Paul Scofield, Robert Shaw, Wendy Hiller. Inglaterra 1966. 120 min.
Fred Zinnemman é um diretor que tem queda por personalidades fortes. O homem frente ao seu destino é sempre pano de fundo dos seus filmes. “Matar ou morrer”, “A um passo da eternidade”, “Espíritos Indômitos”, e tantos outros que podem ser lembrados, com destaque, na filmografia dos anos 50 e 60.
A vida de Thomas More, é, por assim dizer, um prato cheio para este diretor que, com fidelidade elogiável, leva ao cinema os principais aspectos biográficos de quem foi primeiro ministro de Henrique VIII – Lord Chanceler de Inglaterra-, às portas do cisma anglicano. Sir Thomas More, o humanista e intelectual de renome, o advogado incorruptível, o dedicado pai de família, o estadista notável, aparece desenhado com acerto no filme de Zinnemman. Mas é sobretudo a figura do homem íntegro, de convicções firmes e de lealdade impar “ao Rei e primeiramente a Deus”, o que faz deste filme um espetáculo singular, mais ainda nos tempos que correm.
Leia maisDominique Lapierre: “Muito além do amor”. Salamandra. São Paulo. 1991. 376 pgs.
A tertúlia literária mensal brinda-me oportunidades sonhadas, e quase nunca realizadas por falta de tempo: reler os livros que me impactaram anos atrás. E fazê-lo de modo enriquecedor: poder compartilhar a leitura –não na impessoalidade das redes sociais- mas ao vivo, em animada conversa, pipocar de lembranças e reflexões em voz alta
Passaram-se quase 25 anos desde a leitura deste livro. Naquela altura, eu, médico jovem, acompanhei o surgimento da epidemia da AIDS, a impotência dos médicos, o tabu e a palavra que ninguém queria pronunciar. Foi também naquela época, quando um colega, também médico jovem, veio adoecer e faleceu pouco depois, de algo que ninguém queria comentar. Estive visitando-o e mostrou-se agradecido. Foi o meu residente quando eu estava nos últimos anos da faculdade. Conversamos, sorriu, mas nenhum de nós teve coragem de enveredar por temas clínicos, nem muito menos falar do mal que lhe acometia. Lembro que tinha um irmão padre, da mesma ordem religiosa que toma conta da Basílica de Aparecida. Foi ele quem o cuidou até o final e quem celebrou a Missa de sétimo dia, à qual estive presente. Nessa época eu não tinha lido ainda o livro de Lapierre. Pouco depois, quando caiu na minha mão, fiz as conexões em todos os planos: no âmbito médico e também nos âmbito dos cuidados, entendendo de modo plástico o que o livro descreve maravilhosamente. A importância do conforto com que é preciso assistir aos doentes que padeciam desse mal.