Um Conto Chinês: A disponibilidade que nos engrandece

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Un cuento chino [2010] Argentina. Diretor: Sebastián Borensztein. Ricardo Darín, Ignacio Huang, Muriel Santa Ana, Ivan Romanelli 93 minutos

     Vários amigos têm comentado que minhas críticas de filmes são excessivamente longas. Na verdade, eu nunca me propus fazer análises “do filme”, mas apenas utilizá-lo para dar recados. Alguns já estão dissolvidos no meio dos fotogramas; outros, talvez os mais, são reflexões pessoais que a fita me provocou. De qualquer forma, é sinal de sabedoria aprender a ouvir os amigos. Se, como reza o ditado, Vox Populi, Vox Dei, com maior motivo a voz dos amigos merece atenção.

     Um filme argentino brinda uma ótima oportunidade para colocar em prática o modelo de recados pontuais. As produções argentinas que temos assistido nos últimos anos têm surpreendido agradavelmente. Roteiros simples, orçamentos enxutos, situações muito humanas, cálidas, em sintonia com a sensibilidade latina. São filmes de modestas dimensões, miniaturas estéticas, mas redondos, bem acabados. A crise que sucateia o pais vizinho, rende um cinema de primeira. Acontece como com o tango, que afundando suas raízes em carências e tragédia, decola como melodia transcendente, impactante, única. Já dizia Al Pacino no seu inesquecível “Perfume de Mulher”: ‘O tango não é como na vida; se você erra, continua dançando. Isso é o que faz do tango algo especial’.

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Javier Gomá: “Ejemplaridad Pública”

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Javier Gomá: “Ejemplaridad Pública”. Taurus. Madrid (2009) 274 pgs.

     Esperava muito deste livro, talvez demais. O título resultou-me sugestivo e imaginei que encontraria argumentos para alimentar a minha esperança na res publica, nos tempos de mediocridade política que vivemos. Não que a corrupção pública seja novidade, mas o acomodamento, a ausência de crítica, gera um genuíno processo de anestesia de valores que afoga perspectivas de melhora. A podridão existe, mas não nos incomoda. Ao menos, não molesta o suficiente para tomar providencias. Sinceramente, não encontrei nas quase 300 páginas deste livro nada que ajudasse a empreender esta batalha da exemplaridade.

     Cabe perguntar-se, e com razão, o porquê deste comentário, em português, de um livro escrito em espanhol, que não me consta tenha sido traduzido, e que me decepcionou. O motivo é simples: escrevo para ordenar as ideias, as reflexões que surgiram enquanto lia este livro. A contribuição do livro em si é mínima: de fato não fiz nenhuma anotação textual, não tirei nenhuma ficha para utilizar em citações posteriores. Mas a provocação que o livro me brindou, bem vale a reflexão que aqui anoto.

     No primeiro capítulo, Democracia, o autor descreve o percurso da modernidade, com a renuncia a todas as ideologias tradicionais – aristocracia, religião, valores, metafísica – para desembocar na igualdade democrática, aquela que nos faz –em palavras de Tocqueville- “independentes e débeis”. E cita textualmente o francês: “O homem que vive nos países democráticos sente orgulho, ao comparar-se com todos os que o rodeiam, vendo que é igual a eles; mas examinando o conjunto dos seus semelhantes sua insignificância e debilidade lhe entristecem”. Mais adiante: “São homens semelhantes e iguais, que giram sem descansos sobre si mesmos, procurando pequenos e vulgares prazeres para encher sua alma”.

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Alessandro D’Avenia: “Branca como o leite, vermelha como o sangue”

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Alessandro D’Avenia: “Branca como o leite, vermelha como o sangue”. Bertrand Brasil. 2010. Rio de Janeiro, 370 pgs.

     Dificilmente leio livros dos quais não me tenha informado previamente. A vida – o tempo da vida- é limitada, é preciso escolher atentamente. Há exceções, claro; esta é uma delas. Um amigo me entregou o livro: “Leia, vai gostar. É um adolescente que pensa em voz alta. Lembra-se de O apanhador no campo de centeio?”. Naturalmente que lembrava: tinha-o lido alguns meses atrás, até escrevi um comentário por ocasião de um fórum humanístico com universitários. Temos aqui –pensei- mais uma sessão de adolescente-rebelde-sem-causa. Tinha duas viagens de avião pela frente, coloquei o livro na mala de mão como opção para enfrentar as inevitáveis esperas de aeroporto. Funcionou. Leitura fácil, amena, enriquecedora.

     O autor, um jovem professor italiano que ensina Letras no Liceu; o protagonista, Leo, um garoto de 16 anos, contestador, apaixonado, moderníssimo e clássico ao mesmo tempo. Um romântico perdido, que despreza a escola, gosta de arriscar a vida na moto, craque no futebol, toca guitarra, e considera os adultos seres antediluvianos com os quais é impossível estabelecer qualquer comunicação satisfatória e, muito menos, ser compreendido por eles.

     Na vida de Leo, surgem as garotas – amigas como Silvia, e o amor platónico que não poderia ter outro nome que Beatriz. E aparece toda uma fauna de professores dos quais nada se pode esperar. De repente, um professor substituto, que devendo ensinar historia e filosofia, se diverte fazendo perguntas. “Por primeira vez, a resposta não está em algum lugar onde você possa copiá-la. Você é quem tem que encontrar a resposta. E talvez esteja em jogo algo mais. Odeio o Sonhador, porque ele me ferra sempre, me desperta a curiosidade” O sonhador, naturalmente, é o professor questionador. Por alguns instantes, assomou-se à minha memória a figura de um aluno –passaram-se quase quinze anos- que me dizia: “Você guarda cartas na manga! Por que não as põe para fora?” Eu sorria e respondia: “Cada um tem de encontrar as próprias cartas”. Parece que ele as encontrou. Hoje é um professor bem sucedido, questionador, uma fábrica incansável de perguntas.

     A comparação do amigo que me emprestou o livro permanecia na minha cabeça.  Mas Leo não é Holden, o apanhador de Salinger. Talvez o professor sonhador tenha a ver com essas diferenças. As revoltas da adolescência são sempre as mesmas, e se explicam pela cegueira fisiológica, própria da idade, de não enxergar os outros, o mundo, ou qualquer coisa diferente do próprio umbigo. O adolescente se considera sempre único, esgota sua espécie. A lente capaz de sarar a cegueira é o amor. O amor pelos outros –há generosidade no coração jovem- e, também, o amor que os outros te dedicam, e que move as relações humanas. A educação da juventude implica uma educação afetiva, uma Education sentimental. As cegueiras são carências, o amor é parte do combustível formador e, sempre, o lubrificante que facilita o processo.

     Com o amor desabrocha a criatividade poderosa da alma jovem. “Amar é quando alguém suporta o teu cheiro. Somente quem ama o teu cheiro te ama de verdade. Te dá força, te dá serenidade.” São as reflexões do Leo em voz alta. E ainda: “Só quem faz perguntas sobre detalhes procurou sentir o que o coração da gente sente. Os detalhes: um modo de amar para valer”.  Lembrou-me Susanna Tamaro e não foi à toa: o autor agradece à escritora italiana no final do livro.

     Os solilóquios do Leo, uma versão moderníssima de Hamlet, com Ofélia incluída, levantam diversidade de temas que me resultam familiares. Aquele, por exemplo, sobre a música como elemento educador dos afetos, que um colega professor também pratica com os seus alunos: “Às vezes você encontra na música as respostas que procura, quase sem procurar. E, mesmo que não encontre, pelo menos acha os mesmos sentimentos que está experimentando. Alguém já os experimentou. Você não se sente sozinho”.  Ou aquela afirmação de outro amigo de que quando alguém te viu de pijama você perde a autoridade, a exprime Leo quando está no hospital e passeia pelos corredores: “O pijama é o uniforme certo para anular as diferenças”.

     O livro foi uma surpresa agradável. Pergunto-me qual é o público a quem poderia recomendá-lo. Aos jovens? O fórum humanístico com o apanhador de Salinger foi surpreendente, houve quem “ficou com vontade de cuidar de Holden”; houve também quem passou mal, teve até indigestão. Não consigo prever os efeitos das reflexões de Leo quando em contato com os seus pares. Mas de uma coisa estou certo: para os que nos dedicamos à educação e temos o privilégio de lidar diariamente com o rico e imprevisível espectro do ser humano, é uma leitura que vale a pena. Querer conhecer melhor os alunos, não desistir de ouvi-los, fazer perguntas mais do que dar respostas, e ter o amor como pano de fundo, enriquecerá nossas possibilidades, nos tornará mais úteis.

     As viagens de avião me levaram, entre outras coisas, a ter oportunidade de conversar com velhos amigos. Levantou-se o tema da sociedade pós-moderna, onde tudo é muito rápido, imediato, on line. “Pensar –disse alguém- é parar para pensar. As máquinas, os animais, os softwares, os robôs, não pensam porque não param: estão sempre fazendo algo. Mesmo que no automático”. Pode ser –refleti – que a velocidade com que o jovem vive lhe impeça de pensar. Educar deve ser também ajudar a brecar. E as melhores lombadas são as perguntas certas, aquelas cujas respostas não estão na web. Sorri enquanto ensaiava uma variante da fórmula de Descartes: “Je me demande, je m’arrête, je pense donc je suis”. Voilà !

Jaime Nubiola: “Invitación a Pensar”

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Jaime Nubiola: “Invitación a Pensar” Rialp. Madrid (2009). 175 págs.

     O autor, professor de Filosofia na Universidade de Navarra, com ampla experiência docente, reúne neste volume um conjunto de ensaios sobre temas variados. Os estilos de vida, o consumismo, o mimetismo dos jovens em busca de modelos, as redes sociais, o sexo e o amor, a paz no mundo, a família, a política. Não falta um capítulo dedicado à Universidade, cenário profissional do autor, e aos professores, ou melhor, à paixão de ensinar.

Os ensaios querem funcionar como motor de arranque e estímulo para a reflexão. Abrir mão de pensar por conta própria, leva à mediocridade. “Quando se deixa de pensar –cita palavras de Hannah Arendt- a vida humana torna-se supérflua, e os homens são perfeitamente substituíveis, porque a superficialidade nos faz iguais e intercambiáveis”. Refletir e relacionar-se com os outros, estabelecer amizades sinceras, “pois a qualidade da vida –citando agora Saint Exupéry- está em função dos vínculos afetivos livremente escolhidos”.

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Muriel Spark: “A Primavera da Srta. Jean Brodie”

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Muriel Spark: “A Primavera da Srta. Jean Brodie”. Rocco. Rio de Janeiro, 1992. 156 pgs.

     Muriel Spark, escocesa de Edimburgo, é considerada uma das escritoras inglesas mais relevantes do século passado. A Primavera da Srta. Jean Brodie é, talvez, sua obra mais conhecida, até porque foi levada ao cinema.

     Jean Brodie é uma professora peculiar que leciona numa escola de garotas, nos anos de entre guerras. Influente, heterodoxa nos métodos e nos conteúdos, congrega à sua volta um grupo de moças adolescentes –o grupo Brodie- que se destacam no universo do colégio pelas suas ideias avançadas. Passeios, idas ao teatro, reuniões de chá na casa da professora são recurso para conversar sobre o fascismo emergente, a pintura italiana, os homens e o amor. A Srta. Brodie afirma estar na primavera da vida, permanece solteira, diz ter perdido o único amor da sua vida na primeira guerra, e não se arrisca abertamente no universo masculino. Mas, antes de tudo, a professora é uma educadora que molda os temperamentos das jovens que se aproximam dela, ou que ela mesma escolhe, porque o grupo Brodie prima pela seleção apurada. Quer fazer de cada uma das suas meninas “la crème de la crème”.

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Ally Carter: “Ladrões de Elite”

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Ally Carter: “Ladrões de Elite” (Heist Society). Arqueiro. São Paulo. 2010. 231 pgs.

Tomei conhecimento deste livro ao me deparar com uma breve crítica sobre a autora, especializada em escrever romances de adolescentes precoces e de garotas espiãs disfarçadas de colegiais de classe social abastada. Não estou na idade de ler estas coisas, mas quis dar uma trégua a leituras de maior densidade, sobretudo porque tinha muitas horas de voo pela frente, numa sequência de compromissos internacionais. O tempo não passa à toa: dormir num avião é já um desafio, o organismo não se adapta aos menus aéreos como outrora, e os espaços vitais da cabina limitam cada vez mais o corpo e a própria mente. A salada de filmes que é servida também não me atrai; deixo-a de lado sistematicamente, apesar do meu lado cinéfilo. Justifica-se, pois, uma folga, ler algo sem compromisso.

Um romance de adolescentes, profissionais do roubo, atividade que praticam por esporte e por tradição familiar. Esporte mesmo, porque nenhum dos personagens tem carência material alguma. Alguns dos protagonistas são milionários, outros viajam de primeira classe, andam de limusine e naturalmente tem mordomos elegantes e multiuso. Impossível não se lembrar dos últimos filmes de Batman, e do seu mordomo inglês. Mas aqui não se combate o crime; pratica-se, embora sempre com grande estilo: a especialidade da gang é roubar obras de arte. Habilidade esta que, por vezes, serve até para colocá-la ao serviço do bem, ou pelo menos, para ajudar os menos bandidos, se é que se permite tal qualificação que escandalizará os estudiosos da ética.

A protagonista, uma garota de 15 anos, é uma mistura de Sherlock Holmes, com Robin Hood, tem traços do famoso Raffles, o bandido das luvas brancas, e atitude de comando do líder de Missão Impossível. Personagem bem elaborado e nota-se a mão feminina da autora nos contrastes que nos apresenta: uma adolescente encabulada que lhe custa assumir que já é mulher, uma perspicácia digna do inspetor Maigret, e uma articulação internacional que daria inveja ao secretário geral da ONU.

Talvez tudo seja um sonho e como disse no início, a idade para ler este romance seja outra, não a minha. E confesso que o que me atraiu enormemente foi a capa, muito feliz, onde Kat Bishop, nossa adolescente gênio, está fantasiada de “Bonequinha de Luxo”: aquela encantadora Audrey Hepburn , que sonhava com os diamantes de Tiffany’s, ao som inesquecível de Moon River.

Mariano Fazio: La América Ingenua.

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Mariano Fazio: La América Ingenua. Rialp. Madrid (2009). 187 págs.

     Acabo de ler este livro e faço de imediato o propósito de lê-lo novamente. Mas não quero adiar o comentário que poderá estimular outros para aventurar-se nesta leitura apaixonante e substancial. Poucas vezes encontrei num livro relativamente curto, tanta densidade de informação unida a comentários e ponderações que, com notável capacidade de síntese, oferecem um panorama completo de uma época histórica. É, sem dúvida, um livro escrito por um acadêmico, que é também um professor. São termos que não se confundem. O acadêmico pode dominar o tema, mas se carece de atividade docente –da experiência que se ganha na tentativa de transmitir conhecimentos- a clareza expositiva na hora de escrever costuma deixar a desejar. Não é caso: temos aqui uma aula magnífica, compreensível e lógica, das aventuras anexas à descoberta e conquista de América, no século XVI. Uma aula proferida por alguém de cultura inegável –basta dar uma olhada na amplíssima bibliografia consultada e realmente trabalhada- que tem sangue americano. Quer dizer, alguém do lado de cá do Atlântico, o que confere ainda maior credibilidade ao seu raciocínio.

     O tema do descobrimento de América – e nem dizer do amplo capitulo das conquistas- é assunto que suscita polémicas, muitas vezes reflexo de ideologias através das quais se quer entender a realidade da história. Na presente obra, a serenidade alia-se à seriedade científica, para apresentar-nos com equilíbrio um fato que mudou a vida da humanidade. Mais do que descobrir algo ou alguém, tratou-se de um encontro de raças que viviam ignorando-se e de cuja fusão nasceu o continente americano. O autor adverte que transformar lendas negras em brancas é tão ilegítimo como o inverso; o fato histórico pode ter sido bom ou mau, justo ou injusto, mas não se pode apagar com uma penada ideológica, que é sempre uma simplificação grotesca da realidade.

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A Árvore da Vida: Terrence Malick em busca de Sentido

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The Tree of Life (2001). Diretor: Terrence Malick. Brad Pitt, Sean Penn and Jessica Chastain. 139 minutos. 2001.

     Este é um desses filmes que eu nunca teria me animado a assistir, mas não tive escapatória. A convocação me chegou a través de um amigo, depois outro, e mais um. “Você tem que ver esse filme que ganhou Cannes”. Assim de simples. Na verdade, o que se deve ler é “Você tem de ver esse filme, e escrever sobre ele, porque quero saber o que você vai comentar”. É o que da quando a gente se mete a crítico de cinema – que, aliás, nunca afirmei ser, nada mais longe do meu propósito. Apenas compartilho as ideias que me ocorrem quando vejo filmes, na tentativa –isso sim é verdade- de promover a reflexão.

     A bandeira do humanismo que, também é fato, levanto sempre que se me oferece a oportunidade, é estandarte confeccionado à base da reflexão. Educar no humanismo não é tanto ensinar coisas novas, mas, sobretudo ajudar a lembrar das raízes que todos levamos dentro. Ou, como me dizia o outro dia um professor universitário envolvido com os temas da bioética, trata-se de despertar o humano que está adormecido, esquecido dentro de nós. Não se trata de inventar nada, ou melhor, é pura invenção, no sentido latino que Ortega lembra nos seus escritos: inventar- invenire, descobrir, encontrar. Não é criar–afirma o filósofo-, mas aprender a demorar-se em contemplar as coisas próximas da nossa intimidade, do nosso âmbito doméstico, que preenchem as horas da nossa vida. Lá encontramos o filão do humanismo, das raízes, das aventuras que somos chamados a viver.

     Terrence Malick é um diretor muito peculiar, um cult. Como já comentei em alguma ocasião, não sou entusiasta dos diretores que fazem um filme a cada 5 ou 10 anos, e depois desaparecem. Uma espécie de cometa Halley do Cinema. Mas a insistência dos amigos e o premio de Cannes –logo mais volto sobre isto, pois tem sua importância- foram o motor de arranque para enfrentar as quase duas horas e meia de filme.

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J. D. Salinger: “O Apanhador no Campo de Centeio”

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J. D. Salinger: “O Apanhador no Campo de Centeio”. Editora do Autor. Rio de Janeiro. 17ª Ed. 206 pgs.

     Um fórum de humanismo com universitários foi o motivo de me aventurar a ler este livro. Tenho as minhas reservas com os autores cult que publicam “aquele livro”, somem por duas décadas, e talvez se dignem escrever algum outro título, a modo de colher de chá, para os leitores que lhes tributam devoção. O mesmo acontece com alguns diretores de cinema, que fazem um filme a cada dez anos e depois mergulham no ostracismo, rodeando-se de uma aura de pensador misterioso e genial. Por isso nunca cheguei a decidir-me por decifrar o tão trazido e levado apanhador no campo de centeio. Mas desta vez, sendo o tema da discussão, não havia escapatória.

     Li o livro em um par de tacadas. Talvez algo injusto tratando-se de obra tão comentada. Mas adotando o estilo do singular protagonista, vamos com a verdade pela frente, sem ficar preso a convencionalismos hipócritas. A descrição precisa –e a tradução acertadíssima, tudo seja dito- esculpe a figura de Holden Caulfield, um perfeito anti-herói. Lembrei, logo no início, de Bogart em Casablanca, sarcástico e insensível, fazendo questão de parecer o mau da história sem, naturalmente, consegui-lo. Lembrei-me de James Dean, o rebelde sem causa, contemporâneo de Holden, lá na década dos cinquenta. E, postos a lembrar, o Gênio Indomável de Matt Damon –que é domado por Robin Williams- também veio à memória.

     São variações sobre o mesmo tema. O homem crítico com o mundo –e com toda alma viva- que revela uma carência substancial de afeto. Sabe tudo o que não quer, mas desconhece o que realmente quer. Condena qualquer convencionalismo e falsidade, e incorre no mesmo erro; odeia o semelhante porque se odeia a si próprio. Este panorama, incarnado num adolescente, oferece uma riqueza de matizes que é prato cheio para a discussão humanista. De fato, o fórum resultou numa densidade de opiniões considerável. Aprendi muito. E decidi escrever para que outros que tenham alergia aos “cult” não percam a oportunidade de refletir ao compasso das crises do protagonista.

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John Berger & Jean Mohr: “A Fortunate Man: The story of a country doctor”

Pablo González Blasco Livros, Não categorizado 1 Comment

John Berger & Jean Mohr: “A Fortunate Man: The story of a country doctor”. The Penguin Press. London. 1967.

     Tomei conhecimento deste livro no passado mês de Abril, em New Orleans. Foi durante o Congresso Anual da STFM- Society of Teachers of Family Medicine, congresso ao qual assisto habitualmente. Um dos últimos dias, tendo já realizado as minhas apresentações, vi no programa uma sessão intitulada “Reading A Fortunate Man”. Nada sabia do livro, mas conhecia a maioria dos apresentadores, alguns meus amigos pessoais, e reconhecidos líderes no campo da Medicina de Familia, prestigiosos educadores. Fiquei encantado com as historias relatadas, e com o envolvimento dos professores com o livro. Decidi compra-lo, e pedi para o meu amigo, o Dr. John Frey, um dos apresentadores, o emocionante texto que leu no momento, onde confessa ter sido esse livro o que lhe fez não desistir de ser médico. Está em inglês, mas vale a pena lê-lo com calma (e, se necessário, com dicionário). Um testemunho impactante.

O livro é excepcional. Não é uma biografia, nem mesmo uma reportagem sobre Sassall, um médico rural no interior da Inglaterra. É um verdadeiro ensaio, pois a vida do médico é pauta para considerações profundas que incitam à reflexão. E, lá no fundo, surgem os temas candentes com os quais todo médico –que vive de verdade sua vocação profissional- deve defrontar-se na vida. Como lidar com o sofrimento dos outros, a tremenda responsabilidade da confiança que os pacientes depositam no médico –uma especial fraternidade que lhe confere o poder de adentrar-se na intimidade alheia. E, também, o próprio sofrimento, a angústia de saber que sempre se pode fazer mais. E a solidão, porque no íntimo das decisões profissionais não há com quem compartilhá-las. Alguns trechos são magníficos, serviriam de base para ótimas discussões acadêmicas, com fundo filosófico. Vão alguns exemplos: (alguns traduzidos).

Intimidade. Existe uma intimidade toda especial entre o paciente e o seu médico que transcende a intimidade dos amantes. Algo muito próximo da intimidade que se tem na infância. Nos entregamos ao médico, abrimos nossa intimidade, como o faríamos quando crianças, e de algum modo o envolvemos nesse sentimento de família. Imaginamos o médico como um membro honorário da família. Não como os pais, mas sim como um irmão ou irmã mais velho.

A morte. O médico tem familiaridade com a morte. O chamamos para que nos cure e nos alivie, e se não puder fazê-lo, o convocamos para que seja testemunha da nossa morte. O médico circula confortavelmente –é isso que pensamos- entre a vida e a morte.

“Recognition”, palavra difícil de traduzir, porque quer significar identificar, entender, compreender, contato empático. É a pura ação médica, conforme o autor descreve, traduzindo livremente: “A função do médico é reconhecer (entender, compreender) o ser humano. Sei que utilizo esta palavra para incluir técnicas complicadas de psicoterapia, mas na essência, essas técnicas são justamente recursos para entender o ser humano. Para compreender o doente, o médico deve primeiro conhece-lo como pessoa. São cada vez mais raros os médicos que sabem diagnosticar bem; não porque lhes falte conhecimento médico, mas porque não são capazes de levar em conta todos os fatos relevantes –emocionais, históricos, ambientais- e integrá-los com os físicos. Buscam aspectos específicos ao invés de buscar a verdade sobre o enfermo, que lhes sugeriria muitas outras dimensões. Um bom médico é aquele que é capaz de satisfazer as profundas e, com frequência, silenciosas expectativas do enfermo com um sentido de fraternidade. O médico o conhece, sempre. Pode falhar às vezes, mas possui o desejo constante e profundo de um professional que faz questão de conhecer o ser humano”.

Testemunho das vidas dos pacientes. Faz mais do que trata-los. É um testemunha das vidas dos pacientes. Os pacientes não se referem a ele como tal, e somente pensam nele quando precisam. É uma espécie de escrivão que registra as vidas dos que tem à volta. The clerk of their records.

Ativismo. Exceto quando está tratando com os pacientes, é uma pessoa impaciente. É incapaz de estar sem fazer nada, incapaz de descansar. Dorme fácil mas no fundo agradece quando é acordado para atender alguém durante a noite. Custa-lhe aceitar uma vida normal. Talvez porque, sendo consciente ou não, preenche com trabalho o tempo que dedicaria e refletir sobre as angústias que lhe cercam, provenientes do sofrimento dos seus pacientes.

Honorários. As duas últimas páginas são excepcionais, pois abordam o difícil tema do valor de uma atividade como a do Dr. Sassall. Qual é o valor social que se dá a aliviar o sofrimento e a dor? Quando se trata de valorar um procedimento (cirúrgico) ou uma descoberta científica, as medidas são mais adequáveis. Porém, quando do que se trata é de medir a contribuição normal e quotidiana de um médico rural, de um generalista, o assunto é mais complicado.

As Crises. O ponto anterior, não saber medir o valor do ordinário, faz com que o idealismo médico da juventude se transforme em cinismo, pois o médico já não é capaz de saber o valor da sua vida, e externamente também ninguém lhe ajuda, nem reconhece isto.

A conclusão que se pode tirar disto, é que é preciso uma motivação intrínseca e transcendental para superar essas crises, que sempre chegam. O vemos diariamente.

Erros. Tem mais consciência dos próprios erros do que a maioria dos médicos. Não porque cometa mais, ou porque saiba menos. Mas porque chama erros o que muitos outros médicos denominam –talvez com alguma justificativa- complicações desafortunadas.