Giacomo Rizzolatti & Corrado Sinigaglia: “Las neuronas espejo. Los mecanismos de la empatía emocional”

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Giacomo Rizzolatti & Corrado Sinigaglia: “Las neuronas espejo. Los mecanismos de la empatía emocional” Paidós, Barcelona, 2006. 216 pgs.

     Sem dúvida, o sugestivo título, ou melhor, subtítulo –bases da empatia emocional- fará com que muitos se aventurem na leitura desta obra. Foi o meu caso. Deve se advertir que os primeiros capítulos são de difícil leitura –mesmo para os que somos médicos- porque descrevem bases neurofisiológicas que o autor considera necessárias para adentrar-se, posteriormente, em temas que tem uma relevância maior no comportamento humano e no relacionamento interpessoal. Uma leitura rápida, em diagonal, dos primeiros capítulos pode ser suficiente para entender o recado que o autor da nos dois capítulos finais, que são os de maior interesse geral.

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O Discurso do Rei: O Bom Gosto feito Cinema

Pablo González Blasco Filmes 4 Comments

The King’s Speech. Diretor: Tom Hooper. Colin Firth, Geoffrey Rush, Helena Bonham Carter, Guy Pearce, Timothy Spall. 118 min.

     Estamos às portas do Oscar. Rascunho estas linhas no contrarrelógio para antecipar-me ao desfile do tapete vermelho. Não porque queira arriscar nenhum palpite, pois afinal o meu voto –que ninguém leva em consideração na academia de Hollywood- já está concedido. Eu também não ligo grande coisa para a academia, de modo que estamos quites. A motivação que me induz a escrever é outra, ou melhor, várias.

     A primeira é -como tantas vezes fiz notar nos meus comentários cinematográficos- de índole familiar. Encontrei com um dos meus irmãos no começo de Janeiro. O Discurso do Rei estreou na Europa um mês antes do que no Brasil. “É do melhor que vi nos últimos anos”. Foram suas palavras, sem maiores explicações. Nem descrição de cenas, nem de diálogos, nem do desempenho dos atores. Talvez por isto, a frase me impactou. No âmbito familiar, condecorar um filme como definitivo –’o melhor dos últimos tempos’ é uma frase muito forte- sempre impôs respeito. E o gesto com que ele pronunciou a sentença, assemelhava-se ao do meu pai quando falava de Casablanca, ou minha mãe lembrando A Felicidade não se compra; ou mesmo o meu avô, quando discorria sobre Gary Cooper ou Betty Davis. Não adiantava perguntar por quê. O jeito era ver o filme e tirar as próprias consequências. E foi isso que fiz, numa sessão particular, com alguns amigos. Até agora não sei o que mais me marcou: se o filme, as reações de satisfação que pude observar nos que me acompanhavam, ou um maravilhoso bom sabor de boca que perdurou até a segunda vez que o vi, já no Brasil.

     Esta segunda sessão foi no ambiente profissional, inserida no projeto Cultura para Todos, inaugurando uma série de encontros que conviemos em denominar: Grandes Momentos do Cinema. Pude então degustar as cenas com tranquilidade, apreciá-las sem pressa, ponderar os detalhes; os mesmos que buscamos numa obra de arte que, de cara, nos agrada imensamente. A arte nos compraz, não sabemos por quê; e, imbuídos desse clima de bem estar, vamos desentocar os motivos desse efeito confortante, para o corpo e para o espirito. Com o cinema acontece o mesmo. E garimpando detalhes e motivos, decidi recompilar minhas impressões, às pressas, para chegar antes do Oscar e não deixar que as notícias das premiações, que nos cercarão na próxima semana, embacem esse amor à primeira vista –coup de foudre, raio fulminante- que provocou este filme magnífico.

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O Visitante: A Aventura de abrir-se aos demais

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(The Visitor) Diretor: Thomas McCarthy. Richard Jenkins, Haaz Sleiman, Danai Jekesai Gurira, Hiam Abbass, Marian Seldes, Maggie Moore. 104 min.

Não é a primeira vez que me acontece isto. Ter um filme à mão, em cima da mesa, ou mesmo no computador, esperando a ocasião adequada. E não acabo de me decidir. Passa semana, entra semana, chegam outras novidades, vamos deixando para lá. Parece que não é o momento. Porque os filmes, os livros – e tantas outras coisas, o vinho por exemplo-, tem o seu tempo, se requer uma certa propensão, uma sintonia. Tal como se escolhe uma gravata –sem dar maiores explicações- ou como as mulheres escolhem a roupa, e reclamam que não tem nada que vestir, mesmo estando o guarda-roupa repleto, saindo pelo ladrão. Deve ser o meu lado feminino, este dilema de saber encontrar a ocasião certa para cada filme.

Um dos meus irmãos, seguindo as tradições cinematográficas da família –assim fomos criados, e assim continuamos nos entendendo, através de filmes- tinha me advertido que o filme era bom. Qualquer assunto relativo a um sujeito que aprende a batucar e se encontra a si mesmo. Deixe-me levar pelo racional, ao invés de confiar na sintonia que sempre acerta, e como me parecia um argumento pouco atrativo o coloquei no compasso de espera. Aliás, não é o meu forte. As poucas vezes que tentei me somar a uma roda de batuque tive de ouvir aquilo de “tem branco no samba”, comentário coberto de razão.

Também tive oportunidade de ler alguma crítica –mais inputs racionais- que situava a fita nesse universo recente, a questão dos imigrantes. Eis outro assunto que, sem nenhum desprezo, não me atrai o mais mínimo. Tem sabor de lugar comum, como a ecologia, como a globalização. Não que careçam de importância, mas confesso que não me fazem perder o sono. Fosse pouco, tinha acabado de ler um livro, (Angeles Caso: “Contra el Viento”) premio planeta de 2009, galardão notável das letras hispânicas, que as críticas também posicionaram no âmbito dos imigrantes –tema candente na Europa- e também não me entusiasmou.

Aliás, o livro, tal como o filme que nos ocupa, não é sobre imigrantes, porque a condição de outsiders é algo acessório, circunstancial. O miolo é a condição humana, o triste barro do qual estamos feitos, onde de algum modo todos somos imigrantes num mundo no qual mal sabemos nos situar. Uma realidade que enfrentamos diariamente, incorremos nos mesmos erros, nos deixamos enganar como se nunca tivéssemos lido ou vivido essa situação concreta, e não acabamos de aprender. Somos todos imigrantes, que viajam por este mundo –viatores, dizem os clássicos da Teologia- em busca da terra prometida. Resta saber se o destino é claro; mas isso já uma questão pessoal, que cada um deverá decidir, e programar no seu GPS de navegação por esta vida.

Nem imigrantes, pois, nem atração por ritmos de batucada africana, que também não são o meu forte. Mas tudo chega. Não racionalmente, mas afetivamente, com suavidade, doucement como dizem os franceses nessa expressão que envolve calma e delicadeza. Deixei o filme correr, e aos poucos minutos entendi que era o momento: tinha se produzido o arco voltaico das emoções, às minhas em ressonância com as que os fotogramas, timidamente, destilavam.

Uma circunstância fortuita cria o cenário. Um professor encerrado na sua solidão e um casal de emigrantes. A juventude e os sonhos topam com o ceticismo de quem vive acidamente, faz de conta que trabalha, vive “porque a vida dura”, no dizer de Fernando Pessoa, e não escapa às tristes consequências que adverte o poeta português: tem por vida a sepultura. As dificuldades são a faísca que desperta o professor do marasmo, obrigando-o a abrir-se aos outros. Atitude perigosa, esta que permite que os outros entrem na nossa vida –naturalmente carregando seus problemas- complicando-a, e tornando-a nova, maravilhosa, colorida. É nas aventuras onde se encontra o amor perdido, aquele que foi se esvaindo sem repararmos, nos meandros das rotinas diárias, das adversidades mal digeridas, dos desenganos que o mundo – somos todos imigrantes!- nos proporciona em cada esquina.

Conforme o filme corria, uma sensação de déjà-vu cutucava minha memória. Onde vi isto antes? Não o argumento, nem as personagens, mas a atmosfera que envolve a trama? E, de repente, enquanto surge aquela mulher atinada, de olhar cálido, discretamente distante, a lembrança golpeia a memória: Casablanca! Sim, é isso. Isto é Casablanca revisitada.

O professor entocado na sua docência, que no fundo despreza; faz de conta que trabalha e se engana a si mesmo no fingimento. Magoado pela vida, busca nas lembranças musicais, sem sucesso, o calor da mulher que amava e admirava. Tudo é falso, carece de talento para a música, é um fracassado querendo enganar o mundo com alguma conquista acadêmica. E nesse clima, acabando o filme, pareceu-me ver Rick –Bogart em Casablanca- comandando o cassino, alheio a tramas políticas e a qualquer mulher, conversando com o professor, solidário no desprezo global pela raça humana, e por eles mesmos.

Aqui é a batucada que abre a brecha no afeto impermeável do professor, lá é Sam que toca, mesmo proibido, “As times goes by”. A música é o preludio que se atreve a soltar as amarras de um coração que, sendo grande, hibernava golpeado pelo desengano. As cartas de trânsito que permitiriam voar até Lisboa, os papeis do imigrante ilegal que a polícia não admite, são o momento de envolver ambos –Rick e o professor- numa briga que nunca quiseram comprar, que não lhes diz respeito. E, depois, a presença de uma mulher que inunda a tela, uma dama com tremenda classe, que resgata a dignidade de quem tinha desistido de amar.

Atrevi-me a comentar estes desvarios com alguém. Olhou-me com desconfiança. “Não estarás forçando a situação com essa mania de interpretar filmes?” – parecia dizer-me com o olhar o meu interlocutor. Mas eu não me dei por aludido. Afinal, a arte é tal, porque é capaz de provocar um diálogo com quem a contempla. E nesse diálogo intervêm lembranças, reflexões, pensamentos e valores que nos ajudam a situar-nos no mundo. Esse é o papel da cultura, um convite para melhor entender a vida, os outros, nós mesmos. Quem atende o convite de dialogar com a arte –no caso, com o cinema- encontrará respostas para os dilemas quotidianos que a vida nos coloca.

Entende-se o meu pavor quando, sendo convidado para dar aula a alunos dos últimos anos das faculdades de medicina, ocorre-me perguntar quantos livros leem por ano. “Livros não médicos, não é professor?” Assento com a cabeça, suspeitando que coisa boa não pode vir após esse esclarecimento. “Três, quatro talvez” – costuma ser a resposta, que tomo como média de inquietude cultural. A seguir pergunto: “E quantas horas vocês gastam na Internet por dia”. Risos, cochichos, e finalmente um número de consenso: “Entre duas e três horas”. A frase que encerra os interrogatórios do júri nos filmes americanos parece-me a mais adequada como conclusão: “No further questions- não há mais perguntas”.

Nesse cenário cultural da elite universitária, creio que posso me permitir sonhar com os filmes, e viajar de um a outro, e invocar livros, pensadores, filósofos e poetas, como fazia o velho sábio, Boécio, quando escreveu “A consolação da filosofia”, intuindo a barbárie que lhe rodeava. Sim, senti Casablanca em “O Visitante”, e vivi de novo a aventura de Rick e Ilse, e lamento que outros não alcancem a viver esta experiência. A atmosfera de Casablanca envolvida em outro papel de embrulho. E isso, por não falar da cena do aeroporto, que até nisso guardam sintonia.

A abertura para os outros, romper a crosta do egoísmo, disfarçado de indiferença que protege de futuros desenganos. Esse é o recado do filme – de ambos os filmes-, esse é o desafio. Um desafio que custa, porque o eu puxa muito, demais. E nos leva a um isolamento enorme, que se engana a si mesmo com uma avalanche de comunicação fácil, rápida, através de redes sócias, mensagens eletrônicas, repletas de abreviatura e lugares comuns, e saturadas de vazio, porque espremidas, não rendem duas gotas de conteúdo.

O eu nos perde sempre, diz Jimenez Lozano, numa obra que acabo de começar, mais uma tentação que não resisti quando passei diante de uma livraria. “Los Cuadernos de Rembrandt”, assim se chama este livro encantador. E não são mais do que os diários do escritor, seu diálogo com a cultura que lhe chega ao sabor da observação da vida quotidiana. Para fazer frente a esse eu que nos devora –seja qual for a versão, a prepotente ou a sofrida, o ego, o superego ou o id, e Freud que me perdoe- somente há um antídoto: os outros, abrir-se aos outros. Fazer de vida –do viver, para ser exato na concordância gramatical- um verbo transitivo. A porta da felicidade abre-se para fora, para os demais, dizia Kierkegaard; tentar abri-la para dentro – topar-se com o próprio umbigo, novas desculpas agora para o filósofo dinamarquês- resulta em fechá-la mais ainda.

A empreitada de abrir-se aos demais custa. Não tanto pelo que supõe de compromisso–de fato complica a vida-, nem pelo investimento de tempo, pois afinal se malgastam toneladas de tempo em bobagens. Complica porque nos tira da comodidade, nos abre ao imprevisto, nos toca para fora da chamada zona de conforto, para adentrar-nos em algo que está fora do nosso controle, e do nosso pijama com chinelos: a encantadora imprevisibilidade dos outros. Essa temática está muito bem explicada –com exemplos e rigor acadêmico- numa obra que li não há muito tempo, e que não me canso de recomendar: “Ética de la hospitalidad”, de Daniel Innerarity.

Ao som do batuque do professor rejuvenescido, ou do piano de Sam em Casablanca, se nos apresenta o convite de uma revolução liberadora do eu que nos acorrenta na mesquinhez de uma existência medíocre. Um panorama que desabrocha novos horizontes na aventura de abrir-se aos demais, um risco que vale a pena correr porque ai, nessa aventura da imprevisibilidade e do serviço, encontra-se nossa riqueza. “E eu, como é que fico?” – geme o ego assustado com a perspectiva. Nas brumas do aeroporto de Casablanca, o novo Rick fecha a questão: “Nós teremos sempre Paris”. Nunca Bogart me pareceu um filósofo tão definitivo como neste momento.

Roberto Adami Tranjan: “Metanóia”

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Ed. Gente. São Paulo,2002. 200 pgs.
    Ganhei este livro de um amigo. Enviou-me como presente de Natal, e vinha com a dedicatória do autor que, segundo parece, é conhecido do meu amigo. “Para rever conceitos” – escreveu antes da assinatura. Nada mais lógico, pois este é o subtítulo do livro: Uma história de tomada de decisão que fará você rever seus conceitos. O autor, que trabalha profissionalmente como consultor de empresas, propõe um modelo audacioso na gestão dos negócios. Não se pode dizer que são conceitos novos, porque muitos deles já os temos lidos em obras análogas, talvez expostos sob outros nomes ou predicados. A galinha dos ovos de ouro, que é preciso cuidar, ao invés de apenas prestar uma atenção avarenta aos ovos; afiar o machado –dar-se um tempo, cuidar de si- para continuar cortando com eficácia; o círculo de influencia e muitos outros são elementos familiares de obras como os Sete Hábitos das pessoas eficazes, ou Liderança centrada em princípios de Stephen Covey. Nesta obra, servindo-se da história fictícia de uma empresa em crise, recomenda voltar-se para o cliente, conhecer o foco e as possibilidades da própria empresa, tornar os colaboradores elementos motivados e empreendedores, e unir empresa e vida com os mesmos valores. Tudo isto, sem esquecer-se de avaliar os indicadores de desempenho, que vão muito além do balanço financeiro.

    Na verdade, mais do que descortinar novos conceitos, trata-se de lembrar assuntos importantes que, na voragem do dia a dia, acabamos esquecendo. O homem é um ser que esquece, diziam os antigos. E é verdade, esquecemos o que realmente importa, o essencial; e, perdidos nos detalhes e minúcias –que esses fatalmente sempre lembramos- não conseguimos encontrar o caminho de volta: para o sucesso profissional e para centrar a própria vida. Por isso, este livro tem o seu mérito, porque ajuda a lembrar, de modo ameno, conceitos que sempre devem ser revistos. Talvez progredir na vida seja basicamente isso: lembrar, sem cansar-se, dos valores, das raízes, manter o foco. Sem nunca dar-se por satisfeito ou suficientemente instruído. Já dizia outro autor: “Se dizes basta, estás perdido”. Não é um moderno consultor de lideranças, mas Santo Agostinho, que muito entendia também de gestão de pessoas, no século IV.

O Pequeno Nicolau: A tremenda simplicidade de uma alegria contagiante.

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Le petit Nicolas. Director: Laurent Tirard. Maxime Godart, Valerie Lemercier, Kad Merad, Sandrine Kiberlain, Daniel Prévost. 91 min.
    Estar envolvido no universo da educação da afetividade com o Cinema faz com que cada vez que vejo um filme, me pergunte qual é o valor que agrega ao projeto pedagógico ao qual estou atrelado. É um questionamento do qual não me consigo liberar; também não sei se quero fazê-lo, possivelmente não. Mas, como acontece com toda opção, é preciso pagar os impostos. Os impostos são altos, porque os filmes que tenho assistido nos últimos meses, não tem acrescentado grande coisa. E isso depois de um garimpo prudente sobre as inúmeras possibilidades de mercado. Lá se vai o tempo, e pouco sobra para compartilhar com os que têm a paciência de ler meus comentários fílmicos. E para o Natal, o que vou escrever? Na verdade, ninguém me cobra, mas esse é o dever que mais pesa: aquele que ninguém te cobra, o que você mesmo se impõe.




Le petit Nicolas. Director: Laurent Tirard. Maxime Godart, Valerie Lemercier, Kad Merad, Sandrine Kiberlain, Daniel Prévost. 91 min.

    Estar envolvido no universo da educação da afetividade com o Cinema faz com que cada vez que vejo um filme, me pergunte qual é o valor que agrega ao projeto pedagógico ao qual estou atrelado. É um questionamento do qual não me consigo liberar; também não sei se quero fazê-lo, possivelmente não. Mas, como acontece com toda opção, é preciso pagar os impostos. Os impostos são altos, porque os filmes que tenho assistido nos últimos meses, não tem acrescentado grande coisa. E isso depois de um garimpo prudente sobre as inúmeras possibilidades de mercado. Lá se vai o tempo, e pouco sobra para compartilhar com os que têm a paciência de ler meus comentários fílmicos. E para o Natal, o que vou escrever? Na verdade, ninguém me cobra, mas esse é o dever que mais pesa: aquele que ninguém te cobra, o que você mesmo se impõe.

    Assim andavam as coisas, quando decidi assistir Le Petit Nicolas. Sem pretensões; quer dizer, sem pretensões de alta filosofia, com um propósito muito mais simples, treinar o ouvido no meu deficiente francês. Surpreendi-me sorrindo primeiro, dando risada, cheguei até a gargalhada. Tem o seu mérito, porque estando sozinho não há como atribuir a engraçada empolgação ao ambiente. Diverti-me à beça. Logo se percebe que a história está muito bem contada. Aliás, o filme é a versão em celuloide dos gibis produzidos por J.J. Sempé e R. Goscinny – o escritor que deu vida a Asterix- no final da década de cinquenta, começo dos sessenta. E quando um bom comic se leva com acerto ao cinema –o que também não é simples- a história diverte, o sucesso é garantido.

    As personagens estão muito bem construídas, e uns atores magníficos dão vida a caracteres estereotipados, figuras clássicas, responsáveis pelo humor que perpassa os 90 minutos de filmes. São verdadeiros arquétipos dos papeis que representam; não se poderiam imaginar de outro modo melhor. A professora do colégio, o diretor, o inspetor de disciplina, o ministro da educação, os pais do Nicolau e, naturalmente, a variada gama de alunos inquietos e criativos. Todos desfilam com imensa naturalidade, alheios a um mundo que as revoluções de 68 –e nem dizer a sociedade atual- qualificariam de conformista, burguês, repressivo. E, para cúmulo, parecem todos felizes representando o papel que lhes cabe.

    Sem deixar de me divertir com o filme, ocorreu-me pensar como seria difícil explicar hoje por que somente tem meninos na classe do colégio, que nada querem saber das brincadeiras com as meninas, que são educados –domesticados, talvez- por uma professora sofrida e normal, sem aparentes traços homo-afetivos. Ou, pior, por que a mãe suporta um pai machista, reclui-se na cozinha, tem brigas homéricas e tudo acaba bem, sem processos nem denuncias nas delegacias especializadas em violência doméstica.

    Divertia-me, e me preocupava ao mesmo tempo. O tal imposto a pagar, os valores e recados que a gente tem de encontrar nos filmes, onde é que está isso aqui? Que valores afinal podem destilar desta hora e meia de risadas descontraídas? E o filme nem parece real, as situações não são transponíveis à vida de hoje. Imagina só. Uma briga de casal onde ninguém corre atrás dos direitos, e uns pais que acreditam e apoiam o castigo que a professora coloca impiedosamente ao aluno preguiçoso, e nem vão tirar satisfação com o diretor. E o garoto abastado que o mordomo leva ao colégio de Rolls Royce e convive com o filho do gendarme, ou com o colega cujo pai assalariado é explorado pelo patrão. Isto é um mundo diferente, de faz de conta.

    E de repente –por essa associação de ideias que nos salva da mesmice- a música do Gonzaginha veio à minha mente. Não tanto a música, mas a letra: “Eu fico com a pureza da resposta das crianças, é a vida, é bonita, é bonita”. O mundo visto através dos olhos de uma criança, essa é a grandeza e o valor do filme, o seu poder de divertir e de refrescar. Conviver, por alguns minutos com personagens que não tem a vergonha de ser feliz, de cantar a beleza de ser um eterno aprendiz. Porque como diz a música, podemos perguntar a um e outro o que é a vida – aos revolucionários do 68, hoje démodés; ou aos arautos dos direitos humanos, e aos promotores de ONGs pela igualdade sócio-racial-afetiva. Mas no fim, o que a gente gosta é mesmo da resposta das crianças, descobrir com o pequeno Nicolau que a vida vale pelo que fazemos aos outros, por colocar um pouco de alegria, de bom humor; por saber provocar um sorriso que é capaz de resolver tantas tragédias de meia sola, com que os humanos conseguem complicar a existência.

    É um sonho, uma pausa no nosso mundo impiedoso e atroz? Para que poesia em tempos de miséria dizia Holderlin? Temos tanto que fazer, tantos problemas a resolver que não nos permitimos sorrir. Será a nossa a vida real, ou teríamos de ensaiar voltar a ser criança? E apreciar as pequenas coisas da vida, e sorrir, reclamar, conformar-se e saber zerar o taxímetro da nossa lista de afrontas –contabilidade que levamos apuradamente- para perdoar, esquecer, aniquilar da nossa memória afetiva o que nosso orgulho não soube digerir.

    No universo do Petit Nicolas, os adultos seguem a lógica das crianças. Por isso o filme descansa, porque descomplica a vida. E por isso arranca sorrisos, com a ingenuidade com que o fazem as crianças. Crianças verdadeiras, au naturel, e não de plástico, artificias, como as que apresentam alguns filmes assim chamados infantis. Essas, mais do que crianças são adultos disfarçados e problemáticos, que mergulham numa espécie de regressão psiquiátrica para lavar os complexos que alguém lhes colocou, não sem cobrar avultados honorários psicoterápicos.

    E no meio desse universo tão francês, despreocupado de críticas sociológicas decadentes, a alegria, o sorriso; e o poder de alegrar os outros como perspectiva de missão na vida. “Não esqueças que, às vezes, faz-nos falta ter ao lado caras sorridentes” – diz Sulco, um dos meus livros de cabeceira. Uma verdade tremenda, e uma bela proposta para um serviço atual e eficaz: saber sorrir, fazer questão de sorrir, contagiar o bom humor, inundar o ambiente de alegria. A alegria –em palavras de Susanna Tamaro- não é uma linguagem de palavras, mas de olhares; a alegria não convence, contagia. É poderosamente revolucionária.

Um bom amigo, professor de medicina em USA, costuma perguntar aos alunos: “O que é um bom médico?”. E, responde: “Não o que sabe muito, ou tem um curriculum volumoso, ou mesmo o que ganha presentes. O bom médico é aquele que consegue que o paciente saia da consulta melhor do que entrou!” Quer dizer, aquele que fez a diferença na vida do semelhante. Algo perfeitamente aplicável à alegria que se transmite, e contamina o ambiente que nos rodeia. É preciso, claro, ter alegria para poder dar aos outros. E encontrar a fonte da alegria. E aprender a não complicar-se a vida, que é o túmulo da alegria.

Vai ver que nos complicamos a vida porque queremos, ou porque nos tornamos exigentes, e choramos de barriga cheia. “Quanto mais coisas negativas desaparecem da nossa vida –escreve Innerarity – mas irritante resulta o negativo que ainda permanece. Quem tem pouco pelo qual sofrer, sofre cada vez mais por esse pouco residual. É o paradoxo do qual fala Tocqueville: quanto mais residual é um fenômeno desagradável, mais insuportável resulta”. Talvez nos sobrem comodidades, e tudo o que ofusca o nosso conforto é montanha intransponível, causa de crises tão espantosas como injustificáveis.

Onde buscar a fonte da alegria? Isso mesmo se pergunta Ortega no seu fantástico ensaio onde fala da Cultura do amor. “Quando sentirá amargura esta mulher que arranca sorrisos de tudo quanto a rodeia? Talvez nunca; é invencível, porque tem o segredo de saciar as angustias do seu corpo na torrente da sua alma, que nunca se cansa de existir e de sonhar.”

Não cansar-se de existir e de sonhar. Como as crianças, como o pequeno Nicolas. Atrever-se a ser criança de novo. Parece que compensa, segundo lemos em Holderlin: “Brilhantes deuses etéreos/ Tocam-vos levemente/ Quais os dedos do artista/ nas cordas santas/ Sem destino, como a criança/ Castamente guardado/ Em discretos botões,/ O espírito floresce lhes,/ Eterno/ E os santos olhos/ Veem em silenciosa/ E eterna claridade.”

Ser criança, contagiar alegria, essa mesmo que desejamos a todos nestas festas de Natal, e no Ano Novo que começa. Felizes festas de Natal, Feliz Ano Novo, com toneladas de alegria.




Le petit Nicolas. Director: Laurent Tirard. Maxime Godart, Valerie Lemercier, Kad Merad, Sandrine Kiberlain, Daniel Prévost. 91 min.

    Estar envolvido no universo da educação da afetividade com o Cinema faz com que cada vez que vejo um filme, me pergunte qual é o valor que agrega ao projeto pedagógico ao qual estou atrelado. É um questionamento do qual não me consigo liberar; também não sei se quero fazê-lo, possivelmente não. Mas, como acontece com toda opção, é preciso pagar os impostos. Os impostos são altos, porque os filmes que tenho assistido nos últimos meses, não tem acrescentado grande coisa. E isso depois de um garimpo prudente sobre as inúmeras possibilidades de mercado. Lá se vai o tempo, e pouco sobra para compartilhar com os que têm a paciência de ler meus comentários fílmicos. E para o Natal, o que vou escrever? Na verdade, ninguém me cobra, mas esse é o dever que mais pesa: aquele que ninguém te cobra, o que você mesmo se impõe.

    Assim andavam as coisas, quando decidi assistir Le Petit Nicolas. Sem pretensões; quer dizer, sem pretensões de alta filosofia, com um propósito muito mais simples, treinar o ouvido no meu deficiente francês. Surpreendi-me sorrindo primeiro, dando risada, cheguei até a gargalhada. Tem o seu mérito, porque estando sozinho não há como atribuir a engraçada empolgação ao ambiente. Diverti-me à beça. Logo se percebe que a história está muito bem contada. Aliás, o filme é a versão em celuloide dos gibis produzidos por J.J. Sempé e R. Goscinny – o escritor que deu vida a Asterix- no final da década de cinquenta, começo dos sessenta. E quando um bom comic se leva com acerto ao cinema –o que também não é simples- a história diverte, o sucesso é garantido.

    As personagens estão muito bem construídas, e uns atores magníficos dão vida a caracteres estereotipados, figuras clássicas, responsáveis pelo humor que perpassa os 90 minutos de filmes. São verdadeiros arquétipos dos papeis que representam; não se poderiam imaginar de outro modo melhor. A professora do colégio, o diretor, o inspetor de disciplina, o ministro da educação, os pais do Nicolau e, naturalmente, a variada gama de alunos inquietos e criativos. Todos desfilam com imensa naturalidade, alheios a um mundo que as revoluções de 68 –e nem dizer a sociedade atual- qualificariam de conformista, burguês, repressivo. E, para cúmulo, parecem todos felizes representando o papel que lhes cabe.

    Sem deixar de me divertir com o filme, ocorreu-me pensar como seria difícil explicar hoje por que somente tem meninos na classe do colégio, que nada querem saber das brincadeiras com as meninas, que são educados –domesticados, talvez- por uma professora sofrida e normal, sem aparentes traços homo-afetivos. Ou, pior, por que a mãe suporta um pai machista, reclui-se na cozinha, tem brigas homéricas e tudo acaba bem, sem processos nem denuncias nas delegacias especializadas em violência doméstica.

    Divertia-me, e me preocupava ao mesmo tempo. O tal imposto a pagar, os valores e recados que a gente tem de encontrar nos filmes, onde é que está isso aqui? Que valores afinal podem destilar desta hora e meia de risadas descontraídas? E o filme nem parece real, as situações não são transponíveis à vida de hoje. Imagina só. Uma briga de casal onde ninguém corre atrás dos direitos, e uns pais que acreditam e apoiam o castigo que a professora coloca impiedosamente ao aluno preguiçoso, e nem vão tirar satisfação com o diretor. E o garoto abastado que o mordomo leva ao colégio de Rolls Royce e convive com o filho do gendarme, ou com o colega cujo pai assalariado é explorado pelo patrão. Isto é um mundo diferente, de faz de conta.

    E de repente –por essa associação de ideias que nos salva da mesmice- a música do Gonzaginha veio à minha mente. Não tanto a música, mas a letra: “Eu fico com a pureza da resposta das crianças, é a vida, é bonita, é bonita”. O mundo visto através dos olhos de uma criança, essa é a grandeza e o valor do filme, o seu poder de divertir e de refrescar. Conviver, por alguns minutos com personagens que não tem a vergonha de ser feliz, de cantar a beleza de ser um eterno aprendiz. Porque como diz a música, podemos perguntar a um e outro o que é a vida – aos revolucionários do 68, hoje démodés; ou aos arautos dos direitos humanos, e aos promotores de ONGs pela igualdade sócio-racial-afetiva. Mas no fim, o que a gente gosta é mesmo da resposta das crianças, descobrir com o pequeno Nicolau que a vida vale pelo que fazemos aos outros, por colocar um pouco de alegria, de bom humor; por saber provocar um sorriso que é capaz de resolver tantas tragédias de meia sola, com que os humanos conseguem complicar a existência.

    É um sonho, uma pausa no nosso mundo impiedoso e atroz? Para que poesia em tempos de miséria dizia Holderlin? Temos tanto que fazer, tantos problemas a resolver que não nos permitimos sorrir. Será a nossa a vida real, ou teríamos de ensaiar voltar a ser criança? E apreciar as pequenas coisas da vida, e sorrir, reclamar, conformar-se e saber zerar o taxímetro da nossa lista de afrontas –contabilidade que levamos apuradamente- para perdoar, esquecer, aniquilar da nossa memória afetiva o que nosso orgulho não soube digerir.

    No universo do Petit Nicolas, os adultos seguem a lógica das crianças. Por isso o filme descansa, porque descomplica a vida. E por isso arranca sorrisos, com a ingenuidade com que o fazem as crianças. Crianças verdadeiras, au naturel, e não de plástico, artificias, como as que apresentam alguns filmes assim chamados infantis. Essas, mais do que crianças são adultos disfarçados e problemáticos, que mergulham numa espécie de regressão psiquiátrica para lavar os complexos que alguém lhes colocou, não sem cobrar avultados honorários psicoterápicos.

    E no meio desse universo tão francês, despreocupado de críticas sociológicas decadentes, a alegria, o sorriso; e o poder de alegrar os outros como perspectiva de missão na vida. “Não esqueças que, às vezes, faz-nos falta ter ao lado caras sorridentes” – diz Sulco, um dos meus livros de cabeceira. Uma verdade tremenda, e uma bela proposta para um serviço atual e eficaz: saber sorrir, fazer questão de sorrir, contagiar o bom humor, inundar o ambiente de alegria. A alegria –em palavras de Susanna Tamaro- não é uma linguagem de palavras, mas de olhares; a alegria não convence, contagia. É poderosamente revolucionária.

Um bom amigo, professor de medicina em USA, costuma perguntar aos alunos: “O que é um bom médico?”. E, responde: “Não o que sabe muito, ou tem um curriculum volumoso, ou mesmo o que ganha presentes. O bom médico é aquele que consegue que o paciente saia da consulta melhor do que entrou!” Quer dizer, aquele que fez a diferença na vida do semelhante. Algo perfeitamente aplicável à alegria que se transmite, e contamina o ambiente que nos rodeia. É preciso, claro, ter alegria para poder dar aos outros. E encontrar a fonte da alegria. E aprender a não complicar-se a vida, que é o túmulo da alegria.

Vai ver que nos complicamos a vida porque queremos, ou porque nos tornamos exigentes, e choramos de barriga cheia. “Quanto mais coisas negativas desaparecem da nossa vida –escreve Innerarity – mas irritante resulta o negativo que ainda permanece. Quem tem pouco pelo qual sofrer, sofre cada vez mais por esse pouco residual. É o paradoxo do qual fala Tocqueville: quanto mais residual é um fenômeno desagradável, mais insuportável resulta”. Talvez nos sobrem comodidades, e tudo o que ofusca o nosso conforto é montanha intransponível, causa de crises tão espantosas como injustificáveis.

Onde buscar a fonte da alegria? Isso mesmo se pergunta Ortega no seu fantástico ensaio onde fala da Cultura do amor. “Quando sentirá amargura esta mulher que arranca sorrisos de tudo quanto a rodeia? Talvez nunca; é invencível, porque tem o segredo de saciar as angustias do seu corpo na torrente da sua alma, que nunca se cansa de existir e de sonhar.”

Não cansar-se de existir e de sonhar. Como as crianças, como o pequeno Nicolas. Atrever-se a ser criança de novo. Parece que compensa, segundo lemos em Holderlin: “Brilhantes deuses etéreos/ Tocam-vos levemente/ Quais os dedos do artista/ nas cordas santas/ Sem destino, como a criança/ Castamente guardado/ Em discretos botões,/ O espírito floresce lhes,/ Eterno/ E os santos olhos/ Veem em silenciosa/ E eterna claridade.”

Ser criança, contagiar alegria, essa mesmo que desejamos a todos nestas festas de Natal, e no Ano Novo que começa. Felizes festas de Natal, Feliz Ano Novo, com toneladas de alegria.

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Susanna Tamaro: “Va aonde seu coração mandar”

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Este foi o meu primeiro encontro com a obra de Susanna Tamaro.  Um momento inesquecível, prelúdio de muitos outros. Utilizei inúmeras vezes os dizeres que a autora coloca elegantemente neste livro, recomendei-o para muitas pessoas que, posteriormente, me agradeceram. Hoje, passados mais de 13 anos, vim lembrar que na época em que li “Vá aonde seu coração mandar” escrevi uma pequena crítica –uma sinopse recolhendo algumas das frases que mais me impactaram- que ficou esquecida entre os documentos do meu computador. Pensei que estava na hora de devolver à autora com quem tanto simpatizo –temos a mesma idade- o tributo que, imerecidamente, eu recolhi por ter recomendado suas obras. Mergulhei no baú de arquivos mortos do computador –não daquele, mas de um sucessor que conserva o mesmo DNA do disco rígido- encontrei o escrito, e agora o coloco no ar.  Ai vai, com um pedido de desculpas para Susanna Tamaro, e com profundo agradecimento.

Susanna Tamaro. Ed Rocco. Rio de Janeiro, 1996. 136 pgs.

    Eis um livro surpreendente e necessário. São as lições de vida que uma avó, doente, dá para a neta rebelde que fugiu de casa. Escrito em forma de diário, ao compasso das lembranças da própria vida, recados que a neta poderá encontrar ao seu regresso, recomendações empapadas de carinho e sabedoria. Um testamento de vivências, não conselhos, pois se recolhe o que a vida leva consigo: erros e acertos, alegrias e sofrimentos, dúvidas, e o claro-escuro que tece a existência humana quando enlaça grandeza e miséria. E percebemos que o que a avó quer é acertar as contas com o seu passado, e deixar esse saldo de reflexão para a neta que ama. Rodeada de silêncio “na casa muda e solitária como um peixe em sua redoma de cristal” encontra-se a si mesma. “A compreensão exige o silêncio…O silêncio é como o pano úmido, afasta de vez a opacidade do pó”.
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Perfis da Espanha: Andanças culturais a propósito de um Congresso Internacional – Parte 4 de 4

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13 – 15 de Outubro: Outras andanças espanholas.

Em Salamanca fazia frio naquela noite. O hotel, situado próximo do centro velho, facilitou a tentação de ir jantar na Praça Maior, verdadeira jóia arquitetônica. A hora era avançada, as ruas poucos transitadas, mas os monumentos iluminados –sempre efeitos luminosos muito bem conseguidos- nos deram as boas vindas, de modo aconchegante. Na Praça Maior, numa taverna, acabamos o dia na frente de uma tábua de Ibéricos (qualidade muito superior, os produtos ibéricos de Salamanca) acompanhados de uma garrafa de Ribeira del Duero, um ótimo vinho da região.

Na manhã seguinte regressamos à Praça Maior e, percorremos todos os medalhões que estão situados junto das arcadas, o que nos proporcionou uma viagem de mais de uma hora pela história de Espanha. Lá se encontram os reis – da casa de Áustria, de Bourbon-, os conquistadores e generais –Cortés, Pizarro, El Gran Capitán- os intelectuais –Unamuno, Santa Teresa- e muitas outras figuras que ilustraram nosso passeio histórico que acabou com um café na própria praça.

Dirigimo-nos até a Universidade, uma das três primeiras universidades européias fundada no século XIII. Contemplamos a famosa fachada da Universidade, que albergou intelectuais importantíssimos da cultura espanhola, como Miguel de Unamuno (que foi reitor) e Fray Luis de León, cuja estátua está de frente à fachada. Foi Fray Luis quem, depois de permanecer um bom período preso pela inquisição, quando liberado regressou ao claustro acadêmico para reiniciar suas aulas. Todos os alunos esperavam comentários e crítica sobre a sua prisão, mas o insigne professor iniciou a sua aula com a célebre frase: “Como dizíamos ontem….” e continuou como se nada tivesse acontecido nem interrompido sua tarefa docente.
Do outro lado da Universidade se encontra a Catedral de Salamanca, na verdade, as duas Catedrais: a velha, de estilo românico, e a nova, do século XVI, em estilo gótico, que se juntam num pátio, formando um cenário encantador.

A Casa de las Conchas, outro emblema da cidade, construída a finais do século XV, na época de Isabel a Católica, em estilo gótico, plateresco, e com elementos mudéjares. Hoje funciona como biblioteca. No pátio interior, tendo como fundo a Igreja dos Jesuítas, a Clerecía, é difícil superar a tentação de fazer uma foto em perspectiva quando situados nos balcões superiores.

Nossa viagem desse dia, 13 de Outubro, tinha como destino Oviedo, capital de Astúrias, de modo que não foi possível demorar-se mais em Salamanca, e saímos rumo a Leon, antiga capital do reino que tinha o mesmo nome.

Em León, nos dirigimos diretamente até a Catedral, almoçamos na frente dela, e nos deliciamos contemplando o estilo gótico francês, ainda sóbrio de formas, e imponente nos seus vitrais. Quando tivemos oportunidade de entrar depois, comprovamos o que muitos espanhóis comentam: são os vitrais da Catedral de León dos mais bonitos de toda Espanha. Se o estilo gótico é superado em audácia por outras catedrais, a iluminação conseguida com os vitrais é fora de série. E com esta magnífica visão multicolorida saímos rumo a Oviedo.

O caminho até a capital de Astúrias se pode realizar por autopistas ou por estradas vizinhais. Escolhemos estas últimas porque nos proporcionariam melhores vistas da paisagem. A subida do porto de montanha de Pajares cruza as montanhas que separam Asturias de meseta castelhana, e a paisagem –rude, seca- muda completamente fazendo-se verde, úmida, e as casas e vilas salpicam as colinas que nos anunciam uma nova cultura: a Asturiana.

Chegamos a Oviedo, nos instalamos no hotel e saímos em direção a um restaurante –uma sidreria- para jantar um menu típico asturiano. A sidrería em questão chamava-se Terra Astur, e lá nos deliciamos vendo escanciar a sidra (jogar do alto), e não somente vendo mas experimentando, acompanhada de queijos da região, e da famosa fabada asturiana (uma espécie da feijoada daquela região. Foi uma noite memorável.

No dia seguinte, partimos para Covadonga, um Santuário situado nas montanhas da Astúrias, onde começou a reconquista. Foi lá, nas montanhas de Covadonga onde D. Pelayo, rei visigodo, no ano 722 conseguiu derrotar por primeira vez as tropas árabes que, tendo invadido a península em 711, ocuparam-na em pouco tempo chegando até o norte da Espanha. O túmulo de D. Pelayo se conserva na Santa Cova, dedicada à Nossa Senhora de Covadonga, a quem se atribui também a vitória contra os árabes que estavam em superioridade numérica e tática. Visitamos e assistimos a Missa na Basílica de Covadonga situada num cenário maravilhoso, cercada de montanhas. Do lado da basílica, uma grande estátua de Pelayo lembra o feito que, na opinião de alguns historiadores, foi a origem da nação espanhola.

Saímos de Covadonga passamos na cidade mais próxima, Cangas de Onis, onde compramos alguns queijos da região que, acompanhados de vinho, foram nosso almoço especial desse dia, antes de iniciar o retorno que teria como destino Burgos e, à noite, Valladolid, aonde tínhamos reservado hotel.

Não descemos do norte da Espanha pelas autovias, mas sim pelas estradas secundárias, o que nos permitiu contemplar a paisagem única do Parque Nacional dos Picos de Europa, as montanhas que separam Astúrias de Leon, numa passagem diferente da que utilizamos na hora de subir até Astúrias. Iniciamos a viagem por uma estrada que contornava as montanhas, verdadeiro desfiladeiro entre os cumes, com o rio Sella no fundo do vale acompanhando nosso percurso. Paramos o carro várias vezes para fotografar a extasiante paisagem e, em certa ocasião, vimos algumas cabras na montanha, do outro lado do rio, em seu hábitat natural. Vivemos momentos inesquecíveis, rodeados pela natureza rochosa e selvagem do maciço central da Cordilheira Cantábrica, que separa Asturias da região central da península. Um percurso necessário a ser incorporado em quem se aventura por essas latitudes.

No final da tarde, chegamos a Burgos, e nos dirigimos à Catedral que já estava fechada e não pudemos visitá-la. Mesmo assim, contemplamos por fora a beleza do que talvez seja o gótico mais estilizado das catedrais espanholas. Um verdadeiro cartão postal destas andanças. Teríamos permanecido em Burgos, caso tivéssemos reservado o hotel nessa cidade, o que deve ser feito numa próxima ocasião. Desta vez, tivemos de sair rumo a Valladolid onde nos esperava a reserva do hotel.

Chegamos a Valladolid já de noite e, após instalar-nos no hotel, fomos jantar numa taverna próxima, jantar que acompanhamos com uma garrafa de vinho de Ribeira del Duero, original da região, e que goza de ampla fama como todo vinho de Valladolid.

Na manhã seguinte, visitamos alguns pontos do centro da cidade antiga de Valladolid –nosso hotel estava situado num barro fora do centro- tomamos um café na Praça Maior, que também possui o estilo clássico das praças castelhanas, e compramos uns doces típicos numa confeiteira famosa.

Saímos para Madrid, aonde chegamos no início da tarde, e ainda tivemos tempo de almoçar com calma, antes de ir até o aeroporto para devolver o carro alugado e esperar o horário do nosso vôo.

São estes alguns traços rápidos, rascunhos da memória, destas andanças espanholas a propósito de um congresso. São, talvez, um índice a modo de menu, para outras viagens próximas onde será preciso dar seguimento aos desdobramentos que este índice nos sugere. Mas ficam aqui estas anotações para que, relendo-as os que tivemos a sorte de participar das andanças, possamos revivê-las na nossa mente e no coração, obtendo assim o bom sabor de boca que acompanha os diálogos com a história, a nutrição da cultura humanística da qual tanto precisamos para nosso quotidiano viver. Ortega estava certo; por vezes, é preciso ler menos e viajar mais, com espírito aberto, em diálogo com as paisagens e as culturas que o mundo te apresenta.

Perfis da Espanha: Andanças culturais a propósito de um Congresso Internacional – Parte 3 de 4

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10-11 de Outubro: Andanças por Andaluzia.

Estar em Málaga e não aproveitar para conhecer algumas cidades de Andaluzia, seria um equívoco cultural. De modo que tínhamos já montada nossa viagem para, antes de regressar a Madrid, visitar Granada, Sevilla e Córdoba.

Sabendo da dificuldade para encontrar ingressos para la Alhambra de Granada, tentamos comprá-los no dia anterior em Málaga, mas não tivemos sucesso. Estava tudo completo. Mesmo assim, saímos no Domingo dia 10 rumo a Granada, para fazermos uma visita rápida pela cidade, antes de ir a Sevilla, onde estava contratado nosso hotel para aquela noite.

Aproximando-nos de Granada e consciente do tempo ser curto, adiantei pelo microfone do ônibus, alguns comentários de interesse cultural. Granada é uma cidade símbolo na reconquista espanhola aos árabes, pois foi a última cidade a ser conquistada pelos reis católicos, em janeiro de 1492. O rei Boabdil II, após entregar a chave da cidade para os monarcas espanhóis chorou quando, na sua retirada, contemplou por última vez a beleza da cidade. Sua mãe proferiu a famosa frase “Chora como mulher, quando não foste o suficientemente forte para defender a cidade como homem”. O famoso poema –O pranto do mouro- também arranca desta história, lenda, que toda criança espanhola ouviu contar no colégio.

Foi em Granada, também no mesmo ano de 1492, onde os reis Católicos despediram Colombo na sua viagem a America. E em Granada, na sua catedral, estão enterrados Isabel e Fernando, os reis católicos que unificaram Espanha nesse mesmo ano. A partir desse momento Espanha, que passou a ser de fato uma única nação, pois até o momento estava dividida em reinos diferentes (Castela, Leão, Aragão, Andaluzia)

Os comentários culturais incluíram o poeta Federico Garcia Lorca, de quem o grupo já tinha ouvido falar na exposição de Marañón, pois foi no cigarral de menores, a casa de Marañon em Toledo, onde García Lorca leu a famosa peça de teatro “Bodas de Sangue”, antes de estreá-la.

O tempo era curto e quando chegamos aos jardins da Alhambra, optamos por subir ao ônibus turístico que nos proporcionaria uma visita panorâmica de uma hora e meia pela cidade de Granada. O tempo não ajudou: fazia frio e chuva, algo não comum em Granada. A gravação que o ônibus proporcionou não tinha muitas mais informações daquelas que já tinham sido dadas no microfone do nosso próprio ônibus: o que prova que a cultura aprendida no colégio e nas aulas de história, serve muito bem para andar pelo mundo sem fazer má figura.

No final da tarde, saímos rumo a Sevilla, aonde chegamos quando a noite começava. O contato com Sevilla merecia também algumas explicações culturais apropriadas. Lá fomos nós, de novo, microfone em mão. O fantástico cenário que oferece a Semana Santa em Sevilla, com as imagens religiosas cuidadíssimas, delicadas, bem acabadas – e queridíssimas pela população, que se aglomera em volta de uma ou outra a modo de confrarias – é um momento único que merece ser comentado. Nas visitas as Igrejas certamente o grupo encontraria estas imagens – as Virgens Dolorosas às que tanta devoção tem os sevilhanos. Para maior ilustração pedi para passar aos passageiros do ônibus uma estampa da Macarena, presente de um amigo que sempre levo comigo nas viagens. Comentei sobre as Imagens de Cristo, como o Jesus do Gran Poder, ou Cristo da Expiação, mais conhecido como o Cachorro, nome do cigano que no momento da morte fruto de uma luta com facas, inspirou o escultor que acabou plasmando no rosto de Cristo a expressão agônica do cigano.

Após instalar-nos no hotel –por sinal, muito bem situado, no centro da cidade- saímos para passear e conhecer a cidade. Passeamos do lado do rio Guadalquivir, um dos acessos à cidade desde tempos antigos, guardado nos tempos árabes pela Torre del Oro, como atalaia de vigilância.

A famosa praça de touros –La Maestranza- e, afastando-nos do rio, entramos pelas ruas sevilhanas até chegarmos a contemplar a Catedral e a Giralda que, iluminadas à noite, oferecem um espetáculo singular. Nesse trajeto passamos na frente do famoso Arquivo de Índias, onde se guardam todos os documentos da época do descobrimento de América e da posterior colonização, na época em que a Espanha era metrópole de todas as colônias americanas. Contemplar todas estas obras arquitetônicas à noite, mediante uma iluminação muito bem conseguida, nos fez refletir que temos o privilégio de observar o que os construtores nunca tiveram oportunidade de ver, por carecer de luz elétrica, sendo isto mesmo válido para o interior das catedrais e igrejas, pinturas e retábulos, cujos autores tiveram que criar sem ajuda de luz artificial.

No dia seguinte, à luz do dia, pudemos novamente contemplar a Catedral –onde está enterrado Colombo- a Giralda, o Patio dos Naranjos, o Alcázar e adentrar-nos no bairro de Santa Cruz, antigo bairro judeu, um dos recantos mais típicos de Sevilla.

Uma placa, numa rua próxima à praça de dona Elvira nos adverte que naquela rua morou um cavalheiro que inspirou a lenda de D. Juan, personagem definitivamente ligado à cidade de Sevilha. Os jardins de Murillo, a Praça de Espanha, a prefeitura em estilo plateresco, o elegante hotel Alfonso XIII que é um palácio, e os edifícios ao longo da Avenida de la Constitución, que possuem uma personalidade muito especial. Acabamos o passeio com uma sessão de tapas sevilhanas, e nos preparamos para regressar ao hotel, de onde sairíamos para Córdoba.

Cordoba, a 140 km de Sevilla, outra cidade imprescindível nas andanças andaluzas, nos esperava ao cair da tarde. Não dispúnhamos de muito tempo –umas quatro horas- pois o hotel reservado estava ao norte de Córdoba, já caminho de Madrid. De modo que fomos diretos para visitar a Mesquita – Catedral, que causou uma impressão fabulosa em todo o grupo. Poder apreciar a convivência das culturas – uma catedral dentro da antiga Mesquita, que os cristãos não quiseram destruir quando reconquistaram a cidade das mãos dos califas árabes, e todo este conjunto muito próximo do bairro judeu, nos fez lembrar o liberalismo de Marañón que aprendemos na nossa visita a Toledo.

Na saída da Mesquita nos deparamos com uma figura que nos conquistou e se nos ofereceu para mostrar-nos a cidade. Tratava-se de um senhor Cordobés, de uns 70 anos, que vinha trabalhando com guia há mais de 30. Em pouco mais de uma hora, nos mostrou o bairro judeu, e contou-nos histórias e lendas sobre a cidade. Fundada pelos romanos, proporcionou quando província do Império Romano filósofos como Séneca e poetas como Lucano. Dessa época é a ponte romana que é a entrada principal na parte velha da cidade, onde se levanta um monumento a São Rafael Arcanjo, patrono e protetor de cidade de Córdoba. O passeio pelo bairro judeu, com suas estreitas vielas para evitar que entrasse o sol, por ser um clima muito quente; as ruas sempre branqueadas, e repletas de flores nos deixaram uma impressão magnífica.

A estátua dedicada a Maimônides, filósofo e médico judeu, que convivia com os califas árabes e colaborava culturalmente, foi ponto de parada obrigatória, para nos fazer uma foto oficial do grupo. O nosso guia contou-nos que Maimônides foi obrigado a fugir quando outras tribos árabes invadiram Córdoba e queriam obrigá-lo a converter-se ao Islam. Abandonou a cidade, e foi como médico particular do sultão Saladino até Damasco, onde viveu até a morte. Na saída do bairro judeu, nos deparamos com outro médico e filósofo também natural de Córdoba, mas desta vez de origem árabe: Averroes. Fizemos outra foto com ele, pois os bons exemplos de médicos que eram filósofos nunca são demais nos tempos que correm. O que para nós é um esforço juntar –medicina e filosofia- eles o tinham como ponto de partida.

No final da tarde, já dispondo de pouco tempo, o grupo principal se dispersou. Houve quem foi comprar lembranças, e um pequeno grupo decidiu não abandonar Córdoba sem experimentar o vinho de Jerez Amontillado, como sempre acompanhado de algumas tapas adequadas. Um sabor muito Cordobés, muito de Andaluzia que estávamos deixando atrás na viagem de regresso.

Chegamos ao nosso hotel situado na pequena cidade de La Carolina, na província de Jaén, a caminho de Madrid. Esta foi a última noite andaluza.

12 de Outubro: Feriado Nacional, e Regresso

Houve quem acordou cedo, e outros aproveitaram para descansar no hotel, pois tínhamos previsto a saída para Madrid às 13 horas. Um pequeno grupo que acordou mais cedo foi assistir a Missa na Catedral da Cidade. Celebrava-se nesse dia a festividade de Nossa Senhora do Pilar, padroeira da Espanha. Também se comemora nesse dia, na Espanha, a festa da Hispanidad, recordando o dia em que Colombo chegou a América por primeira vez.

A Missa na Catedral foi uma surpresa. Também nesse dia a Guarda Civil – um corpo militar fundado no século XIX na Espanha, que goza de um prestígio enorme sendo o principal protagonista da luta contra o terrorismo, celebrava nesse dia à sua padroeira, Nossa Senhora do Pilar. Deste modo, todas as autoridades civis e militares estavam presentes na Missa, e foram oficiais da Guarda Civil os que fizeram as leituras correspondentes. E, para maior solenidade, um coro andaluz atuou na Missa: ouvimos sevillanas, rocieras, e toda a variedade que a piedade andaluza sabe colocar no culto, temperado com sua própria cultura, palmas e castanholas. Um momento inesquecível e emocionante, uma belíssima despedida de Andaluzia nesta viagem memorável.

A caminho de Madrid, decidimos improvisar uma parada em Aranjuez, a 50 km de Madrid, que também é, como El Escorial, um Sitio Real, desde a época de Felipe II. Lá se encontra o Palácio Real e os Jardins, que também foram residência dos reis da Espanha. Sua construção iniciada em tempos de Felipe II foi depois desenvolvida por Carlos III, o mesmo que promoveu o Palácio Real de Madrid.

Aranjuez é o nome do famoso concerto que Joaquin Rodrigo compôs e que espalhou o nome da cidade pelo mundo todo. Um concerto para Violão e orquestra que o grupo dizia não conhecer até que após algumas pequenas explicações e breve entonação da melodia temática, descobriram que o tinham gravado no próprio telefone celular. Assim é a vida e a cultura: convivemos com elementos famosos, sem conhecer a sua origem até que num momento dado, uma parada descontraída para um almoço, alguém nos abre os olhos.

O almoço em Aranjuez –em dispersão, porque os gostos sempre são variados- finalizou nossas atividades em conjunto. De lá saímos para o aeroporto de Barajas, onde naquela noite a maioria do grupo tomaria o vôo de volta ao Brasil.

Um pequeno grupo permaneceria ainda alguns dias na Espanha. No mesmo aeroporto de Barajas, já tinham reservado um carro para alugar e, após despedir-nos todos –e também do nosso fiel motorista Manuel, e de agradecer seus serviços- saíram rumo a Salamanca, onde tinham reservado hotel para essa noite.

Perfis da Espanha: Andanças culturais a propósito de um Congresso Internacional – Parte 2 de 4

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6-9 de Outubro: Málaga e o Congresso

O dia 6 de manhã saímos de Madrid rumo a Málaga, onde seria o congresso, motivo principal da viagem. Manuel, o motorista que tinha nos levado nos dias anteriores nas visitas às cidades de Castela, também viria conosco desta vez. Na verdade, foi uma solicitação expressa que fizemos à agência de ônibus, porque já estávamos perfeitamente entrosados com ele. Um bom profissional, que fez toda a diferença nas viagens pela península ibérica.

O caminho de Madrid até Málaga (mais de 550 km), passa pela Mancha, terra de D. Quixote, e tivemos oportunidade de ver alguns dos moinhos de vento –dos velhos- embora a energia eólica de hoje em dia, semeou de moinhos-geradores todo o território. Uma parada estratégica na última vila de Ciudad Real, para comer, antes de descer o desfiladeiro de “Despeñaperros” (literalmente, o local por onde os cachorros despencam….) e entrar em Andaluzia.

Chegamos a Málaga no meio da tarde, e após instalar-nos no hotel saímos para o local do Congresso, pois queríamos assistir a abertura do evento, e já tomar contato com o local, as pessoas, iniciar nosso trabalho que, além de realizar as apresentações que tínhamos assinadas, consistiria também em estabelecer novos contatos, e promover os programas desenvolvidos pela SOBRAMFA. Cada um do grupo tinha vários impressos onde constavam as apresentações que faríamos nos próximos dias, de modo que nos espalhamos entre a grande multidão –mais de 4000 congressistas- e começamos a distribuir os impressos e convidar os novos amigos para nossas apresentações. (cfr. apresentações Wonca 2010)

De volta ao hotel, a expectativa era grande para o dia seguinte. Mesmo assim, decidimos sair para conhecer um pouco a cidade, e comer algo típico: Málaga, cidade costeira, se destaca pelos peixes, frutos do mar e, como em toda Andaluzia, pelo vinho de Jerez. Devíamos, pois, situar-nos no ambiente para iniciar o Congresso com bom pé. Coincidentemente, também havia um aniversario para comemorar.

No dia 7, quinta feira, tivemos uma agenda intensa de atividades, pois nos correspondiam 3 apresentações orais de manhã, e mais duas de tarde.

A sala que nos tinha sido destinada reunia vários exposições sob o título Medical Education. De fato, esse foi o tom de todas nossas apresentações: mostrar como é possível contribuir através da perspectiva metodológica e científica da Medicina de Família para uma melhor formação do estudante de medicina. E nada melhor do que levar os próprios estudantes para apresentar os resultados. O impacto não se fez esperar: vários professores nos procuraram, trocaram cartões, e ficaram impressionados vendo jovens estudantes apresentar os trabalhos, em inglês, num congresso internacional onde os protagonistas costumam ser médicos experientes.

No final desse primeiro dia, tivemos uma reunião no hotel com o Dr. Rogelio Altisent, que vinha de Zaragoza a convite do comitê organizador do Congresso para uma mesa redonda sobre ética em atenção primária, que é a sua especialidade. A reunião foi animada e a seguir alguns fomos jantar com o Rogelio para melhor delinear uma idéia que vem surgindo com força nos últimos tempos: o poder educacional da SOBRAMFA, que vai muito além da Medicina de Família, sendo capaz de colaborar na formação integral do futuro médico em muitos outros aspectos. Tudo faz pensar que a SOBRAMFA terá de promover uma nova instituição, uma variante do que já vem fazendo, para apoiar a formação humanística do estudante de medicina. O nome de IDHEM (Instituto para o Desenvolvimento Humanístico da Educação Médica) vai tomando forma.

No dia 8, sexta feira, tínhamos somente uma apresentação, um workshop para expor as variadas estratégias que temos utilizado na SOBRAMFA para colocar nossos professores dentro das diversas faculdades de Medicina. E assim intitulamos o workshop: estratégias para infiltrar-se nas escolas médicas! Afinal, esse era um dos tópicos principais do congresso que levantava o problema –muito ventilado na Espanha, e em outros países- de como os médicos de família podem ser de fato professores nas faculdades de medicina. O público não foi numeroso, mas sim seleto. Lá estava o Bruno Kissling, que foi o Presidente do último Wonca Meeting em Basiléia ,e algumas outras pessoas, além do nosso grupo em peso, e também Josh Freeman. O resultado foi positivo e, certamente, terá de traduzir-se em alguma publicação, que é o modo de perpetuar os trabalhos que se apresentam nos congressos.

Vale comentar que a comida que era servida –nos três dias de Congresso- era abundante e excelente, completamente diferente de outros congressos internacionais. Os organizadores espanhóis não economizaram neste item, incluído vinho de Rioja que também era servido para quem desejasse.

As atividades do Congresso acabaram cedo nesse dia, e muitos aproveitaram para conhecer a cidade, fazer compras, passear. No final do dia, junto com um pequeno grupo organizamos um jantar de avaliação para pensar na marcha do congresso, nos pontos positivos, nas falhas que seria preciso corrigir, já de cara ao próximo congresso de Wonca, em 2011, que será em Varsóvia (Polônia). Tudo faz pensar, que estes congressos são de fato um instrumento positivo para que os estudantes se lancem em trabalhos científicos, com repercussão internacional, e aprendam a apresentar diante de um público multicultural, em outro idioma. Parece que é, de fato, uma boa colaboração que a SOBRAMFA pode oferecer às faculdades de medicina que queriam integrar-se neste projeto que dever ser, por tal motivo, elaborado de modo formal daqui em diante. Um produto que será gerenciado pelo IDHEM.

O dia 9, sábado, tivemos nossas últimas apresentações. E, desta vez, com um novo desafio. O horário do Workshop de Cine coincidiria com o das três apresentações orais, de modo que não poderíamos estar todo o grupo junto. Decidimos apoiar as apresentações orais –que seriam feitas pelos estudantes- visto que o workshop de cine já tem seu público cativo, e goza de ampla experiência internacional. O resultado foi também muito positivo, nas apresentações e também no workshop que contou com a presença de Francesc Borrell, um velho amigo nosso da Universidade de Barcelona, e que interveio de modo ativo durante o workshop.

Tínhamos livre a tarde desse dia, pois o congresso acabou na hora do almoço. Apesar da chuva –que vinha caindo desde o dia anterior- num grupo pequeno decidimos almoçar no centro da cidade, e visitar o Museu de Picasso. Não foi possível, pela fila imensa de turistas, que suporia mais de uma hora de espera, e o tempo era escasso. Deste modo, decidimos visitar a Alcazaba, a fortaleza árabe situada na parte alta da cidade. Málaga, que foi fundada pelos fenícios no século VII AC, teve um importante papel durante a dominação árabe da Espanha (dos séculos VII até o século XV). O palácio da Alcazaba, de onde se pode visualizar toda a cidade e o porto (local estratégico, que explica o interesse dos fenícios), junto com o Castelo do Gibralfaro, são os principais monumentos da época dos reinos árabes florescentes, nos séculos XI a XIV. Também visitamos um teatro romano, do século I, e comprovamos –como todos fazem nestas ocasiões- a perfeita acústica de que goza sua disposição topográfica.

Pensando sobre Marañon em sua terra: O médico e a tolerância

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Por João A. G. G. Prats

Diário da nossa viagem: difícil escrever. Parece que foi tudo tão rápido. Mas tanto aconteceu nesses poucos dias que se passaram. Quanto amigo reviu? Poucos, mas pude conhecer novos amigos. A vida nos mostra lições a cada dia. Esta viagem certamente não foi diferente. Como pôde, Gregorio Marañon durante sua juventude ter visto, vindo das mesmas pessoas, brigas políticas durante o dia e filosóficas conversas “entre amigos” durante à noite em sua casa? A lição da tolerância seria a primeira de muitas que Marañon nos ensinaria e quero colocá-la em foco neste texto.

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