Susanna Tamaro: “Va aonde seu coração mandar”

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Este foi o meu primeiro encontro com a obra de Susanna Tamaro.  Um momento inesquecível, prelúdio de muitos outros. Utilizei inúmeras vezes os dizeres que a autora coloca elegantemente neste livro, recomendei-o para muitas pessoas que, posteriormente, me agradeceram. Hoje, passados mais de 13 anos, vim lembrar que na época em que li “Vá aonde seu coração mandar” escrevi uma pequena crítica –uma sinopse recolhendo algumas das frases que mais me impactaram- que ficou esquecida entre os documentos do meu computador. Pensei que estava na hora de devolver à autora com quem tanto simpatizo –temos a mesma idade- o tributo que, imerecidamente, eu recolhi por ter recomendado suas obras. Mergulhei no baú de arquivos mortos do computador –não daquele, mas de um sucessor que conserva o mesmo DNA do disco rígido- encontrei o escrito, e agora o coloco no ar.  Ai vai, com um pedido de desculpas para Susanna Tamaro, e com profundo agradecimento.

Susanna Tamaro. Ed Rocco. Rio de Janeiro, 1996. 136 pgs.

    Eis um livro surpreendente e necessário. São as lições de vida que uma avó, doente, dá para a neta rebelde que fugiu de casa. Escrito em forma de diário, ao compasso das lembranças da própria vida, recados que a neta poderá encontrar ao seu regresso, recomendações empapadas de carinho e sabedoria. Um testamento de vivências, não conselhos, pois se recolhe o que a vida leva consigo: erros e acertos, alegrias e sofrimentos, dúvidas, e o claro-escuro que tece a existência humana quando enlaça grandeza e miséria. E percebemos que o que a avó quer é acertar as contas com o seu passado, e deixar esse saldo de reflexão para a neta que ama. Rodeada de silêncio “na casa muda e solitária como um peixe em sua redoma de cristal” encontra-se a si mesma. “A compreensão exige o silêncio…O silêncio é como o pano úmido, afasta de vez a opacidade do pó”.
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Perfis da Espanha: Andanças culturais a propósito de um Congresso Internacional – Parte 4 de 4

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13 – 15 de Outubro: Outras andanças espanholas.

Em Salamanca fazia frio naquela noite. O hotel, situado próximo do centro velho, facilitou a tentação de ir jantar na Praça Maior, verdadeira jóia arquitetônica. A hora era avançada, as ruas poucos transitadas, mas os monumentos iluminados –sempre efeitos luminosos muito bem conseguidos- nos deram as boas vindas, de modo aconchegante. Na Praça Maior, numa taverna, acabamos o dia na frente de uma tábua de Ibéricos (qualidade muito superior, os produtos ibéricos de Salamanca) acompanhados de uma garrafa de Ribeira del Duero, um ótimo vinho da região.

Na manhã seguinte regressamos à Praça Maior e, percorremos todos os medalhões que estão situados junto das arcadas, o que nos proporcionou uma viagem de mais de uma hora pela história de Espanha. Lá se encontram os reis – da casa de Áustria, de Bourbon-, os conquistadores e generais –Cortés, Pizarro, El Gran Capitán- os intelectuais –Unamuno, Santa Teresa- e muitas outras figuras que ilustraram nosso passeio histórico que acabou com um café na própria praça.

Dirigimo-nos até a Universidade, uma das três primeiras universidades européias fundada no século XIII. Contemplamos a famosa fachada da Universidade, que albergou intelectuais importantíssimos da cultura espanhola, como Miguel de Unamuno (que foi reitor) e Fray Luis de León, cuja estátua está de frente à fachada. Foi Fray Luis quem, depois de permanecer um bom período preso pela inquisição, quando liberado regressou ao claustro acadêmico para reiniciar suas aulas. Todos os alunos esperavam comentários e crítica sobre a sua prisão, mas o insigne professor iniciou a sua aula com a célebre frase: “Como dizíamos ontem….” e continuou como se nada tivesse acontecido nem interrompido sua tarefa docente.
Do outro lado da Universidade se encontra a Catedral de Salamanca, na verdade, as duas Catedrais: a velha, de estilo românico, e a nova, do século XVI, em estilo gótico, que se juntam num pátio, formando um cenário encantador.

A Casa de las Conchas, outro emblema da cidade, construída a finais do século XV, na época de Isabel a Católica, em estilo gótico, plateresco, e com elementos mudéjares. Hoje funciona como biblioteca. No pátio interior, tendo como fundo a Igreja dos Jesuítas, a Clerecía, é difícil superar a tentação de fazer uma foto em perspectiva quando situados nos balcões superiores.

Nossa viagem desse dia, 13 de Outubro, tinha como destino Oviedo, capital de Astúrias, de modo que não foi possível demorar-se mais em Salamanca, e saímos rumo a Leon, antiga capital do reino que tinha o mesmo nome.

Em León, nos dirigimos diretamente até a Catedral, almoçamos na frente dela, e nos deliciamos contemplando o estilo gótico francês, ainda sóbrio de formas, e imponente nos seus vitrais. Quando tivemos oportunidade de entrar depois, comprovamos o que muitos espanhóis comentam: são os vitrais da Catedral de León dos mais bonitos de toda Espanha. Se o estilo gótico é superado em audácia por outras catedrais, a iluminação conseguida com os vitrais é fora de série. E com esta magnífica visão multicolorida saímos rumo a Oviedo.

O caminho até a capital de Astúrias se pode realizar por autopistas ou por estradas vizinhais. Escolhemos estas últimas porque nos proporcionariam melhores vistas da paisagem. A subida do porto de montanha de Pajares cruza as montanhas que separam Asturias de meseta castelhana, e a paisagem –rude, seca- muda completamente fazendo-se verde, úmida, e as casas e vilas salpicam as colinas que nos anunciam uma nova cultura: a Asturiana.

Chegamos a Oviedo, nos instalamos no hotel e saímos em direção a um restaurante –uma sidreria- para jantar um menu típico asturiano. A sidrería em questão chamava-se Terra Astur, e lá nos deliciamos vendo escanciar a sidra (jogar do alto), e não somente vendo mas experimentando, acompanhada de queijos da região, e da famosa fabada asturiana (uma espécie da feijoada daquela região. Foi uma noite memorável.

No dia seguinte, partimos para Covadonga, um Santuário situado nas montanhas da Astúrias, onde começou a reconquista. Foi lá, nas montanhas de Covadonga onde D. Pelayo, rei visigodo, no ano 722 conseguiu derrotar por primeira vez as tropas árabes que, tendo invadido a península em 711, ocuparam-na em pouco tempo chegando até o norte da Espanha. O túmulo de D. Pelayo se conserva na Santa Cova, dedicada à Nossa Senhora de Covadonga, a quem se atribui também a vitória contra os árabes que estavam em superioridade numérica e tática. Visitamos e assistimos a Missa na Basílica de Covadonga situada num cenário maravilhoso, cercada de montanhas. Do lado da basílica, uma grande estátua de Pelayo lembra o feito que, na opinião de alguns historiadores, foi a origem da nação espanhola.

Saímos de Covadonga passamos na cidade mais próxima, Cangas de Onis, onde compramos alguns queijos da região que, acompanhados de vinho, foram nosso almoço especial desse dia, antes de iniciar o retorno que teria como destino Burgos e, à noite, Valladolid, aonde tínhamos reservado hotel.

Não descemos do norte da Espanha pelas autovias, mas sim pelas estradas secundárias, o que nos permitiu contemplar a paisagem única do Parque Nacional dos Picos de Europa, as montanhas que separam Astúrias de Leon, numa passagem diferente da que utilizamos na hora de subir até Astúrias. Iniciamos a viagem por uma estrada que contornava as montanhas, verdadeiro desfiladeiro entre os cumes, com o rio Sella no fundo do vale acompanhando nosso percurso. Paramos o carro várias vezes para fotografar a extasiante paisagem e, em certa ocasião, vimos algumas cabras na montanha, do outro lado do rio, em seu hábitat natural. Vivemos momentos inesquecíveis, rodeados pela natureza rochosa e selvagem do maciço central da Cordilheira Cantábrica, que separa Asturias da região central da península. Um percurso necessário a ser incorporado em quem se aventura por essas latitudes.

No final da tarde, chegamos a Burgos, e nos dirigimos à Catedral que já estava fechada e não pudemos visitá-la. Mesmo assim, contemplamos por fora a beleza do que talvez seja o gótico mais estilizado das catedrais espanholas. Um verdadeiro cartão postal destas andanças. Teríamos permanecido em Burgos, caso tivéssemos reservado o hotel nessa cidade, o que deve ser feito numa próxima ocasião. Desta vez, tivemos de sair rumo a Valladolid onde nos esperava a reserva do hotel.

Chegamos a Valladolid já de noite e, após instalar-nos no hotel, fomos jantar numa taverna próxima, jantar que acompanhamos com uma garrafa de vinho de Ribeira del Duero, original da região, e que goza de ampla fama como todo vinho de Valladolid.

Na manhã seguinte, visitamos alguns pontos do centro da cidade antiga de Valladolid –nosso hotel estava situado num barro fora do centro- tomamos um café na Praça Maior, que também possui o estilo clássico das praças castelhanas, e compramos uns doces típicos numa confeiteira famosa.

Saímos para Madrid, aonde chegamos no início da tarde, e ainda tivemos tempo de almoçar com calma, antes de ir até o aeroporto para devolver o carro alugado e esperar o horário do nosso vôo.

São estes alguns traços rápidos, rascunhos da memória, destas andanças espanholas a propósito de um congresso. São, talvez, um índice a modo de menu, para outras viagens próximas onde será preciso dar seguimento aos desdobramentos que este índice nos sugere. Mas ficam aqui estas anotações para que, relendo-as os que tivemos a sorte de participar das andanças, possamos revivê-las na nossa mente e no coração, obtendo assim o bom sabor de boca que acompanha os diálogos com a história, a nutrição da cultura humanística da qual tanto precisamos para nosso quotidiano viver. Ortega estava certo; por vezes, é preciso ler menos e viajar mais, com espírito aberto, em diálogo com as paisagens e as culturas que o mundo te apresenta.

Perfis da Espanha: Andanças culturais a propósito de um Congresso Internacional – Parte 3 de 4

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10-11 de Outubro: Andanças por Andaluzia.

Estar em Málaga e não aproveitar para conhecer algumas cidades de Andaluzia, seria um equívoco cultural. De modo que tínhamos já montada nossa viagem para, antes de regressar a Madrid, visitar Granada, Sevilla e Córdoba.

Sabendo da dificuldade para encontrar ingressos para la Alhambra de Granada, tentamos comprá-los no dia anterior em Málaga, mas não tivemos sucesso. Estava tudo completo. Mesmo assim, saímos no Domingo dia 10 rumo a Granada, para fazermos uma visita rápida pela cidade, antes de ir a Sevilla, onde estava contratado nosso hotel para aquela noite.

Aproximando-nos de Granada e consciente do tempo ser curto, adiantei pelo microfone do ônibus, alguns comentários de interesse cultural. Granada é uma cidade símbolo na reconquista espanhola aos árabes, pois foi a última cidade a ser conquistada pelos reis católicos, em janeiro de 1492. O rei Boabdil II, após entregar a chave da cidade para os monarcas espanhóis chorou quando, na sua retirada, contemplou por última vez a beleza da cidade. Sua mãe proferiu a famosa frase “Chora como mulher, quando não foste o suficientemente forte para defender a cidade como homem”. O famoso poema –O pranto do mouro- também arranca desta história, lenda, que toda criança espanhola ouviu contar no colégio.

Foi em Granada, também no mesmo ano de 1492, onde os reis Católicos despediram Colombo na sua viagem a America. E em Granada, na sua catedral, estão enterrados Isabel e Fernando, os reis católicos que unificaram Espanha nesse mesmo ano. A partir desse momento Espanha, que passou a ser de fato uma única nação, pois até o momento estava dividida em reinos diferentes (Castela, Leão, Aragão, Andaluzia)

Os comentários culturais incluíram o poeta Federico Garcia Lorca, de quem o grupo já tinha ouvido falar na exposição de Marañón, pois foi no cigarral de menores, a casa de Marañon em Toledo, onde García Lorca leu a famosa peça de teatro “Bodas de Sangue”, antes de estreá-la.

O tempo era curto e quando chegamos aos jardins da Alhambra, optamos por subir ao ônibus turístico que nos proporcionaria uma visita panorâmica de uma hora e meia pela cidade de Granada. O tempo não ajudou: fazia frio e chuva, algo não comum em Granada. A gravação que o ônibus proporcionou não tinha muitas mais informações daquelas que já tinham sido dadas no microfone do nosso próprio ônibus: o que prova que a cultura aprendida no colégio e nas aulas de história, serve muito bem para andar pelo mundo sem fazer má figura.

No final da tarde, saímos rumo a Sevilla, aonde chegamos quando a noite começava. O contato com Sevilla merecia também algumas explicações culturais apropriadas. Lá fomos nós, de novo, microfone em mão. O fantástico cenário que oferece a Semana Santa em Sevilla, com as imagens religiosas cuidadíssimas, delicadas, bem acabadas – e queridíssimas pela população, que se aglomera em volta de uma ou outra a modo de confrarias – é um momento único que merece ser comentado. Nas visitas as Igrejas certamente o grupo encontraria estas imagens – as Virgens Dolorosas às que tanta devoção tem os sevilhanos. Para maior ilustração pedi para passar aos passageiros do ônibus uma estampa da Macarena, presente de um amigo que sempre levo comigo nas viagens. Comentei sobre as Imagens de Cristo, como o Jesus do Gran Poder, ou Cristo da Expiação, mais conhecido como o Cachorro, nome do cigano que no momento da morte fruto de uma luta com facas, inspirou o escultor que acabou plasmando no rosto de Cristo a expressão agônica do cigano.

Após instalar-nos no hotel –por sinal, muito bem situado, no centro da cidade- saímos para passear e conhecer a cidade. Passeamos do lado do rio Guadalquivir, um dos acessos à cidade desde tempos antigos, guardado nos tempos árabes pela Torre del Oro, como atalaia de vigilância.

A famosa praça de touros –La Maestranza- e, afastando-nos do rio, entramos pelas ruas sevilhanas até chegarmos a contemplar a Catedral e a Giralda que, iluminadas à noite, oferecem um espetáculo singular. Nesse trajeto passamos na frente do famoso Arquivo de Índias, onde se guardam todos os documentos da época do descobrimento de América e da posterior colonização, na época em que a Espanha era metrópole de todas as colônias americanas. Contemplar todas estas obras arquitetônicas à noite, mediante uma iluminação muito bem conseguida, nos fez refletir que temos o privilégio de observar o que os construtores nunca tiveram oportunidade de ver, por carecer de luz elétrica, sendo isto mesmo válido para o interior das catedrais e igrejas, pinturas e retábulos, cujos autores tiveram que criar sem ajuda de luz artificial.

No dia seguinte, à luz do dia, pudemos novamente contemplar a Catedral –onde está enterrado Colombo- a Giralda, o Patio dos Naranjos, o Alcázar e adentrar-nos no bairro de Santa Cruz, antigo bairro judeu, um dos recantos mais típicos de Sevilla.

Uma placa, numa rua próxima à praça de dona Elvira nos adverte que naquela rua morou um cavalheiro que inspirou a lenda de D. Juan, personagem definitivamente ligado à cidade de Sevilha. Os jardins de Murillo, a Praça de Espanha, a prefeitura em estilo plateresco, o elegante hotel Alfonso XIII que é um palácio, e os edifícios ao longo da Avenida de la Constitución, que possuem uma personalidade muito especial. Acabamos o passeio com uma sessão de tapas sevilhanas, e nos preparamos para regressar ao hotel, de onde sairíamos para Córdoba.

Cordoba, a 140 km de Sevilla, outra cidade imprescindível nas andanças andaluzas, nos esperava ao cair da tarde. Não dispúnhamos de muito tempo –umas quatro horas- pois o hotel reservado estava ao norte de Córdoba, já caminho de Madrid. De modo que fomos diretos para visitar a Mesquita – Catedral, que causou uma impressão fabulosa em todo o grupo. Poder apreciar a convivência das culturas – uma catedral dentro da antiga Mesquita, que os cristãos não quiseram destruir quando reconquistaram a cidade das mãos dos califas árabes, e todo este conjunto muito próximo do bairro judeu, nos fez lembrar o liberalismo de Marañón que aprendemos na nossa visita a Toledo.

Na saída da Mesquita nos deparamos com uma figura que nos conquistou e se nos ofereceu para mostrar-nos a cidade. Tratava-se de um senhor Cordobés, de uns 70 anos, que vinha trabalhando com guia há mais de 30. Em pouco mais de uma hora, nos mostrou o bairro judeu, e contou-nos histórias e lendas sobre a cidade. Fundada pelos romanos, proporcionou quando província do Império Romano filósofos como Séneca e poetas como Lucano. Dessa época é a ponte romana que é a entrada principal na parte velha da cidade, onde se levanta um monumento a São Rafael Arcanjo, patrono e protetor de cidade de Córdoba. O passeio pelo bairro judeu, com suas estreitas vielas para evitar que entrasse o sol, por ser um clima muito quente; as ruas sempre branqueadas, e repletas de flores nos deixaram uma impressão magnífica.

A estátua dedicada a Maimônides, filósofo e médico judeu, que convivia com os califas árabes e colaborava culturalmente, foi ponto de parada obrigatória, para nos fazer uma foto oficial do grupo. O nosso guia contou-nos que Maimônides foi obrigado a fugir quando outras tribos árabes invadiram Córdoba e queriam obrigá-lo a converter-se ao Islam. Abandonou a cidade, e foi como médico particular do sultão Saladino até Damasco, onde viveu até a morte. Na saída do bairro judeu, nos deparamos com outro médico e filósofo também natural de Córdoba, mas desta vez de origem árabe: Averroes. Fizemos outra foto com ele, pois os bons exemplos de médicos que eram filósofos nunca são demais nos tempos que correm. O que para nós é um esforço juntar –medicina e filosofia- eles o tinham como ponto de partida.

No final da tarde, já dispondo de pouco tempo, o grupo principal se dispersou. Houve quem foi comprar lembranças, e um pequeno grupo decidiu não abandonar Córdoba sem experimentar o vinho de Jerez Amontillado, como sempre acompanhado de algumas tapas adequadas. Um sabor muito Cordobés, muito de Andaluzia que estávamos deixando atrás na viagem de regresso.

Chegamos ao nosso hotel situado na pequena cidade de La Carolina, na província de Jaén, a caminho de Madrid. Esta foi a última noite andaluza.

12 de Outubro: Feriado Nacional, e Regresso

Houve quem acordou cedo, e outros aproveitaram para descansar no hotel, pois tínhamos previsto a saída para Madrid às 13 horas. Um pequeno grupo que acordou mais cedo foi assistir a Missa na Catedral da Cidade. Celebrava-se nesse dia a festividade de Nossa Senhora do Pilar, padroeira da Espanha. Também se comemora nesse dia, na Espanha, a festa da Hispanidad, recordando o dia em que Colombo chegou a América por primeira vez.

A Missa na Catedral foi uma surpresa. Também nesse dia a Guarda Civil – um corpo militar fundado no século XIX na Espanha, que goza de um prestígio enorme sendo o principal protagonista da luta contra o terrorismo, celebrava nesse dia à sua padroeira, Nossa Senhora do Pilar. Deste modo, todas as autoridades civis e militares estavam presentes na Missa, e foram oficiais da Guarda Civil os que fizeram as leituras correspondentes. E, para maior solenidade, um coro andaluz atuou na Missa: ouvimos sevillanas, rocieras, e toda a variedade que a piedade andaluza sabe colocar no culto, temperado com sua própria cultura, palmas e castanholas. Um momento inesquecível e emocionante, uma belíssima despedida de Andaluzia nesta viagem memorável.

A caminho de Madrid, decidimos improvisar uma parada em Aranjuez, a 50 km de Madrid, que também é, como El Escorial, um Sitio Real, desde a época de Felipe II. Lá se encontra o Palácio Real e os Jardins, que também foram residência dos reis da Espanha. Sua construção iniciada em tempos de Felipe II foi depois desenvolvida por Carlos III, o mesmo que promoveu o Palácio Real de Madrid.

Aranjuez é o nome do famoso concerto que Joaquin Rodrigo compôs e que espalhou o nome da cidade pelo mundo todo. Um concerto para Violão e orquestra que o grupo dizia não conhecer até que após algumas pequenas explicações e breve entonação da melodia temática, descobriram que o tinham gravado no próprio telefone celular. Assim é a vida e a cultura: convivemos com elementos famosos, sem conhecer a sua origem até que num momento dado, uma parada descontraída para um almoço, alguém nos abre os olhos.

O almoço em Aranjuez –em dispersão, porque os gostos sempre são variados- finalizou nossas atividades em conjunto. De lá saímos para o aeroporto de Barajas, onde naquela noite a maioria do grupo tomaria o vôo de volta ao Brasil.

Um pequeno grupo permaneceria ainda alguns dias na Espanha. No mesmo aeroporto de Barajas, já tinham reservado um carro para alugar e, após despedir-nos todos –e também do nosso fiel motorista Manuel, e de agradecer seus serviços- saíram rumo a Salamanca, onde tinham reservado hotel para essa noite.

Perfis da Espanha: Andanças culturais a propósito de um Congresso Internacional – Parte 2 de 4

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6-9 de Outubro: Málaga e o Congresso

O dia 6 de manhã saímos de Madrid rumo a Málaga, onde seria o congresso, motivo principal da viagem. Manuel, o motorista que tinha nos levado nos dias anteriores nas visitas às cidades de Castela, também viria conosco desta vez. Na verdade, foi uma solicitação expressa que fizemos à agência de ônibus, porque já estávamos perfeitamente entrosados com ele. Um bom profissional, que fez toda a diferença nas viagens pela península ibérica.

O caminho de Madrid até Málaga (mais de 550 km), passa pela Mancha, terra de D. Quixote, e tivemos oportunidade de ver alguns dos moinhos de vento –dos velhos- embora a energia eólica de hoje em dia, semeou de moinhos-geradores todo o território. Uma parada estratégica na última vila de Ciudad Real, para comer, antes de descer o desfiladeiro de “Despeñaperros” (literalmente, o local por onde os cachorros despencam….) e entrar em Andaluzia.

Chegamos a Málaga no meio da tarde, e após instalar-nos no hotel saímos para o local do Congresso, pois queríamos assistir a abertura do evento, e já tomar contato com o local, as pessoas, iniciar nosso trabalho que, além de realizar as apresentações que tínhamos assinadas, consistiria também em estabelecer novos contatos, e promover os programas desenvolvidos pela SOBRAMFA. Cada um do grupo tinha vários impressos onde constavam as apresentações que faríamos nos próximos dias, de modo que nos espalhamos entre a grande multidão –mais de 4000 congressistas- e começamos a distribuir os impressos e convidar os novos amigos para nossas apresentações. (cfr. apresentações Wonca 2010)

De volta ao hotel, a expectativa era grande para o dia seguinte. Mesmo assim, decidimos sair para conhecer um pouco a cidade, e comer algo típico: Málaga, cidade costeira, se destaca pelos peixes, frutos do mar e, como em toda Andaluzia, pelo vinho de Jerez. Devíamos, pois, situar-nos no ambiente para iniciar o Congresso com bom pé. Coincidentemente, também havia um aniversario para comemorar.

No dia 7, quinta feira, tivemos uma agenda intensa de atividades, pois nos correspondiam 3 apresentações orais de manhã, e mais duas de tarde.

A sala que nos tinha sido destinada reunia vários exposições sob o título Medical Education. De fato, esse foi o tom de todas nossas apresentações: mostrar como é possível contribuir através da perspectiva metodológica e científica da Medicina de Família para uma melhor formação do estudante de medicina. E nada melhor do que levar os próprios estudantes para apresentar os resultados. O impacto não se fez esperar: vários professores nos procuraram, trocaram cartões, e ficaram impressionados vendo jovens estudantes apresentar os trabalhos, em inglês, num congresso internacional onde os protagonistas costumam ser médicos experientes.

No final desse primeiro dia, tivemos uma reunião no hotel com o Dr. Rogelio Altisent, que vinha de Zaragoza a convite do comitê organizador do Congresso para uma mesa redonda sobre ética em atenção primária, que é a sua especialidade. A reunião foi animada e a seguir alguns fomos jantar com o Rogelio para melhor delinear uma idéia que vem surgindo com força nos últimos tempos: o poder educacional da SOBRAMFA, que vai muito além da Medicina de Família, sendo capaz de colaborar na formação integral do futuro médico em muitos outros aspectos. Tudo faz pensar que a SOBRAMFA terá de promover uma nova instituição, uma variante do que já vem fazendo, para apoiar a formação humanística do estudante de medicina. O nome de IDHEM (Instituto para o Desenvolvimento Humanístico da Educação Médica) vai tomando forma.

No dia 8, sexta feira, tínhamos somente uma apresentação, um workshop para expor as variadas estratégias que temos utilizado na SOBRAMFA para colocar nossos professores dentro das diversas faculdades de Medicina. E assim intitulamos o workshop: estratégias para infiltrar-se nas escolas médicas! Afinal, esse era um dos tópicos principais do congresso que levantava o problema –muito ventilado na Espanha, e em outros países- de como os médicos de família podem ser de fato professores nas faculdades de medicina. O público não foi numeroso, mas sim seleto. Lá estava o Bruno Kissling, que foi o Presidente do último Wonca Meeting em Basiléia ,e algumas outras pessoas, além do nosso grupo em peso, e também Josh Freeman. O resultado foi positivo e, certamente, terá de traduzir-se em alguma publicação, que é o modo de perpetuar os trabalhos que se apresentam nos congressos.

Vale comentar que a comida que era servida –nos três dias de Congresso- era abundante e excelente, completamente diferente de outros congressos internacionais. Os organizadores espanhóis não economizaram neste item, incluído vinho de Rioja que também era servido para quem desejasse.

As atividades do Congresso acabaram cedo nesse dia, e muitos aproveitaram para conhecer a cidade, fazer compras, passear. No final do dia, junto com um pequeno grupo organizamos um jantar de avaliação para pensar na marcha do congresso, nos pontos positivos, nas falhas que seria preciso corrigir, já de cara ao próximo congresso de Wonca, em 2011, que será em Varsóvia (Polônia). Tudo faz pensar, que estes congressos são de fato um instrumento positivo para que os estudantes se lancem em trabalhos científicos, com repercussão internacional, e aprendam a apresentar diante de um público multicultural, em outro idioma. Parece que é, de fato, uma boa colaboração que a SOBRAMFA pode oferecer às faculdades de medicina que queriam integrar-se neste projeto que dever ser, por tal motivo, elaborado de modo formal daqui em diante. Um produto que será gerenciado pelo IDHEM.

O dia 9, sábado, tivemos nossas últimas apresentações. E, desta vez, com um novo desafio. O horário do Workshop de Cine coincidiria com o das três apresentações orais, de modo que não poderíamos estar todo o grupo junto. Decidimos apoiar as apresentações orais –que seriam feitas pelos estudantes- visto que o workshop de cine já tem seu público cativo, e goza de ampla experiência internacional. O resultado foi também muito positivo, nas apresentações e também no workshop que contou com a presença de Francesc Borrell, um velho amigo nosso da Universidade de Barcelona, e que interveio de modo ativo durante o workshop.

Tínhamos livre a tarde desse dia, pois o congresso acabou na hora do almoço. Apesar da chuva –que vinha caindo desde o dia anterior- num grupo pequeno decidimos almoçar no centro da cidade, e visitar o Museu de Picasso. Não foi possível, pela fila imensa de turistas, que suporia mais de uma hora de espera, e o tempo era escasso. Deste modo, decidimos visitar a Alcazaba, a fortaleza árabe situada na parte alta da cidade. Málaga, que foi fundada pelos fenícios no século VII AC, teve um importante papel durante a dominação árabe da Espanha (dos séculos VII até o século XV). O palácio da Alcazaba, de onde se pode visualizar toda a cidade e o porto (local estratégico, que explica o interesse dos fenícios), junto com o Castelo do Gibralfaro, são os principais monumentos da época dos reinos árabes florescentes, nos séculos XI a XIV. Também visitamos um teatro romano, do século I, e comprovamos –como todos fazem nestas ocasiões- a perfeita acústica de que goza sua disposição topográfica.

Pensando sobre Marañon em sua terra: O médico e a tolerância

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Por João A. G. G. Prats

Diário da nossa viagem: difícil escrever. Parece que foi tudo tão rápido. Mas tanto aconteceu nesses poucos dias que se passaram. Quanto amigo reviu? Poucos, mas pude conhecer novos amigos. A vida nos mostra lições a cada dia. Esta viagem certamente não foi diferente. Como pôde, Gregorio Marañon durante sua juventude ter visto, vindo das mesmas pessoas, brigas políticas durante o dia e filosóficas conversas “entre amigos” durante à noite em sua casa? A lição da tolerância seria a primeira de muitas que Marañon nos ensinaria e quero colocá-la em foco neste texto.

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Perfis da Espanha: Andanças culturais a propósito de um Congresso Internacional – Parte 1 de 4

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Contaram-me em certa ocasião que alguém se aproximou de Ortega y Gasset para lhe pedir algum tipo de explicação conceitual. O filósofo olhou para o interlocutor, sorriu e disse: “O que o senhor precisa é ler menos e viajar mais”. Este conselho se me fez presente no momento em que o nosso avião aterrissava em Madrid, no primeiro dia de Outubro de 2010 com um nutrido grupo de 19 pessoas, rumo a um Congresso Internacional em Málaga. O Congresso era, sem dúvida, o motivo central da viagem. Mas haveria oportunidade de visitar diversos locais e cidades na Espanha, ocasião de mergulhar na cultura e na historia. Uma viagem que, bem aproveitada, ajuda a entender o mundo, o ser humano, porque é sempre um diálogo enriquecedor.

Saindo do desembarque, lá estava o ônibus, que seria nosso companheiro fiel nas andanças espanholas. Situe-me no primeiro banco, fiz-me com o microfone e, sem demoras, comecei a falar. O grupo era numeroso e heterogêneo. Logo percebi que não seria possível que todos estivessem juntos sempre, prestando atenção, escutando as explicações que por ventura eu poderia dar. Mas entendi também que, de alguma maneira, esperavam a minha colaboração. Afinal, o convite para integrar a força tarefa na empreitada acadêmica tinha partido de mim. Assim, decidi que faria comentários no microfone para quem quisesse escutar, e ao longo do percurso e dos muitos passeios que nos aguardavam, conversaria com os que caminhassem do meu lado.  Contaria historias, pois essa é principal função de quem faz de guia. Trata-se de ajudar a ver, de facilitar o diálogo com a cultura que o panorama, completamente novo para a maioria, nos ofereceria.

2- 3 de Outubro: Madrid

Do aeroporto de Barajas, saímos rumo ao Hotel. Microfone ligado, adverti sobre a topografia de Madrid que, em outono, mostra-se com um clima particularmente acolhedor. Uma cidade construída com escala humana, para o homem, não para os veículos, que são muitos. Na verdade foram um amigo arquiteto e o meu irmão biólogo, os que me fizeram notar essas características da capital espanhola. Por isso, é agradável passear pelas amplas calçadas, regulares e bem cuidadas, sob a sombra das numerosas arvores –é a cidade melhor arborizada da Europa, segundo alguns- que perfazem um verdadeiro túnel verde na primavera e no verão; e no outono, com o cair das folhas, deixam filtrar-se o sol, para aquecer o ambiente. E à noite, uma luz âmbar envolve a cidade que continua vivendo até altas horas da madrugada. Os passeios noturnos em Madrid são inesquecíveis, tem um sabor único.

Passamos do lado da Porta de Alcalá e logo mais a Cibeles nos dava as boas vindas. “Eis um cartão postal de Madrid –comentei- e, lembrem, mais do que fazer fotos de paisagens e monumentos –que sempre terão inferior qualidade a qualquer foto oficial- façam fotos de vocês diante desses locais. Esse é um cartão postal que não está à venda”. Mesmo sabendo que o meu conselho não teria um alto impacto, a advertência foi válida: as inúmeras fotos –milhares, certamente- que se fariam nessa viagem, incluiriam algumas com pessoas, que são as que se lembram sempre com carinho.

Situados no hotel, que seria o nosso quartel geral nos próximos dias, dedicamos os dois primeiros a conhecer Madrid. Ou melhor, a passear pelas ruas, observar as gentes, contemplar monumentos. O grupo, como era de se esperar, não tardou em dispersar-se, em reunir-se, em dispersar-se novamente, para encontrar-se sempre no final do dia no hotel. Eu, sempre acompanhado, por estes ou aqueles, procurei não poupar comentários, histórias –muitas delas aprendidas na minha infância- que pudessem ajudar a apreciar a realidade da minha cidade natal. Caminhamos do hotel até Puerta del Sol, fazendo uma parada estratégica para almoçar num dos muitos bares que estão situados no caminho. Foi o primeiro contato do grupo com a culinária espanhola, que nos acompanharia nos próximos dias, representada emblematicamente nas famosas Tapas. “Pode-se pedir um almoço na Espanha, há inúmeras possibilidades. Mas quando o objetivo é passear e conhecer as cidades, a opção certa é tapear. “O que seriam as tapas?”- surge a pergunta obrigatória. Talvez petiscos, talvez quitutes, sei lá. As tapas são únicas, algo muito espanhol e, como mais de um já comentou, não há tapa que seja ruim.

Após cruzar pela Gran Via e chegar a Puerta del Sol, nos defrontamos com a estátua do Urso e do Madronho, símbolo de Madrid, pois é dessa árvore que a cidade empresta o nome. No centro da praça, a estátua de Carlos III, o rei Bourbon responsável pelas melhoras urbanísticas na capital de Espanha, o que lhe valeu o titulo do “melhor prefeito de Madrid”. De lá, não sem antes parar na famosa confeiteira “La Mallorquina” (desde 1894) onde compramos uns doces típicos, nos dirigimos à Plaza Mayor, com parada obrigatória para um café.

O percurso clássico no Madrid de los Austrias –assim chamado porque corresponde à época dos séculos XV- XVII, reinado dos Habsburgos na Espanha- , nos leva da Plaza Mayor, pela Calle Mayor, até o Palácio Real, que nos faz mudar de cenário e dinastia, introduzindo-nos no Madrid dos Bourbons. O Teatro da Opera, de frente ao Palacio,  a Catedral de la Almudena, do lado esquerdo e os Jardins de Sabatini no lado direito, desenham um outro cartão postal da cidade. Como andávamos com o tempo um pouco justo, e queríamos pegar o Metro em Opera, atravessamos a praça onde estão situados os reis godos –não faltou uma primeira aula sobre a história de Espanha, quando Espanha ainda não existia como tal. Leovigildo, Recaredo, e um chamado de atenção sobre D. Pelayo, com quem depois encontraríamos no seu habitat nas montanhas de Covadonga. O nosso dia finalizou numa Jamoneria (cervejaria onde há tapas, e se vendem jamones, outra personagem importantíssima que foi apresentada ao grupo nesta viagem, com grande sucesso).

Ainda em Madrid, o dia seguinte, nos brindou a oportunidade de passear pela cidade, pois o tempo –encoberto, mas agradável- o permitia. Descemos pela Gran Via, até encontrar Alcalá, cruzamos por Cibeles e, na altura da Puerta de Alcalá, entramos no Parque do Retiro. As explicações históricas sobre o parque, construído na época de Felipe IV, privativo dos reis, aberto muito depois à nobreza, e finalmente ao público, também se fizeram necessárias. Paramos para tomar um café na frente do estanque, onde já tínhamos aprendido que em tempos em que o parque era destinado ao retiro dos reis, estes se divertiam simulando batalhas navais no pequeno lago.

O passeio pelo Retiro, com saída na porta da Cuesta de Moyano, nos fez passar diante da estátua do Angel Caído, que chamou a atenção do grupo. Em Atocha –uma lembrança ao atentado de 2004- enveredamos pelo passeio da Castellana de volta para Neptuno. Começou a chover e decidimos pela melhor opção: entrar no Museu do Prado, e gastar um par de horas por lá. Fiz uma advertência: “Não adianta quere ver muitas coisas. Sugiro Velazquez, y Goya, para mergulhar na pintura espanhola”. Na verdade, tivemos também oportunidade de ver algo de Murillo e de El Greco. Quando saímos, a chuva tinha parado, e o cansaço impunha volta ao hotel e um descanso merecido.  Mas, não para todos: houve quem foi assistir ao jogo do Real Madrid que nesse domingo era ás 9 da noite. E quem foi não se arrependeu: uma goleada de 6 x 1 para o Real, coisa que fazia muito tempo não se via no estádio Santiago Bernabeu.

4 de Outubro: El Escorial, Segovia, Ávila

Os dias que permanecemos em Madrid antes de sair para o Congresso Internacional que teria lugar em Málaga tinham decidido conhecer locais situados a pouca distância da capital espanhola.

Assim, o primeiro dia saímos rumo ao Escorial, para visitar o Monasterio e Palácio estabelecidos a pouco mais de 50 km. de Madrid. Era segunda feira e estava fechado, de modo que não pudemos visitá-lo por dentro. Mas, o ambiente majestoso da arquitetura de Juan de Herrera, impunha uma explicação que, conforme nos aproximávamos da cidade, brindei com a ajuda do microfone.

A iniciativa desta construção que é todo um símbolo do Império Espanhol, partiu de Felipe II quando em 1557 derrotou os franceses na batalha de São Quintin, no dia 10 de Agosto. Esse dia, a Igreja celebra a festa de São Lourenço, um mártir romano dos primeiros séculos do cristianismo, que foi queimado numa grelha. Daí a forma de grelha invertida –as quatro torres são os pés da grelha- que apresenta o conjunto arquitetônico, em honra de S. Lourenço, que também dá nome ao Real Sitio de São Lourenço del Escorial. Lá estão enterrados, no Panteão, os principais reis da Espanha, com as rainhas consortes; e, quando o rei foi casado com várias rainhas, a escolha recai sobre aquela que foi mãe de um futuro rei. Reis e mães de reis: eis o critério que permite ser enterrado no Panteão real de El Escorial.

Passeamos pela esplanada, ao tempo que respondia as perguntas sobre essa época do Império espanhol, onde “o sol não se punha nunca”. Como assim? –perguntou alguém. “Repare, quando anoitecia nas Filipinas (que, por sinal, se chamam assim por conta de Felipe II), amanhecia no Peru, pois tudo isso era território espanhol no século XVI”. A famosa biblioteca de El Escorial, onde se guardam obras originais –por exemplo, o livro da Vida de Santa Teresa-  também foi objeto de comentários. E, naturalmente, a sala do Trono que contrasta na sua simplicidade com a riqueza da Basílica. “Fiz um palácio para Deus e uma choupana para mim” –respondia o Imperador Felipe II quando lhe interrogavam sobre esta questão.

Uma pergunta, no meio do passeio, surpreendeu-me. Um estudante se aproxima e me interroga: “Por que queimaram a esse São Lourenço?”. “Como assim? Era um mártir!” – respondi. A perplexidade que o meu interlocutor refletia no olhar me fez perceber que a explicação dada no microfone do ônibus, dava por sabidos conceitos que mereciam um repasso.  E assim o fiz, quando de novo no ônibus, rumo a Segovia, fiz um pequeno resumo dos primeiros três séculos de Cristianismo, as perseguições e os mártires, a paz de Constantino após vencer a batalha da Ponte Mílvia, seguindo o emblema da Cruz: “In hoc signo vinces”.

Em Segovia –como em todas as cidades que visitaríamos depois- os ônibus não podem circular no Centro, de modo que fomos obrigados a descer no estacionamento reservado para esses veículos, e caminhar a pé. Fizemos uma foto oficial na praça, tendo como fundo o Aqueduto romano, símbolo da cidade, construído há mais de 2000 anos. Tem mais de 800 metros de comprimento, quase 200 arcos, e as pedras que o integram encaixam apenas forças geométricas, sem uso de nenhum tipo de cimento. Sempre tirando lições da história, se comprova como as coisas bem feitas superam a barreira do tempo.

Subimos até a ponta lateral do aqueduto e de lá caminhamos para ver a Catedral, de estilo gótico tardio e, posteriormente,  nos dirigimos até o Alcázar. O Alcázar de Segóvia –outro símbolo da cidade- e um castelo-palácio que foi construído no século XII, e reformado múltiplas vezes, até o século XIX. Seu perfil peculiar inspirou Walt Disney para desenhar o Castelo de Disneyworld que todos conhecem: de fato, quando estivemos à frente dele, notamos que para todos era familiar.

Em Segovia Isabel a Católica foi proclamada Rainha de Castela, e também de Segovia saíram importantes apoios na guerra das Comunidades (Comuneros), que enfrentaram as tropas do jovem Imperador Carlos V (de Alemanha), neto da Rainha Isabel, quando veio à Espanha dos países baixos (nasceu em Gante) para ocupar o trono da Espanha. As Comunidades de Castela foram derrotadas, e Carlos assumiu o trono e o título de Carlos I da Espanha: ele seria o pai de Felipe II.

As visitas que fizemos a todas as cidades tiveram sempre a limitação do tempo: poderíamos ver muitas coisas, mas sem tempo de nos deter nos detalhes. Por isso a recomendação que fiz desde o começo: “Esta viagem oferece a oportunidade de ter uma visão geral de muitas cidades da Espanha, mas não haverá tempo de parar, entrar para visitar cada monumento ou museu. Temos de fazer uma opção, e a mais sensata parece a de obter uma perspectiva global das cidades, e dos destaques de cada uma”.

Mas os passeios pelas cidades de Castela nos ofereceram a oportunidade de entender e reconhecer os principais estilos arquitetônicos que se replicam ao longo das ruas. Muitos foram os comentários que, fruto das lembranças que tinha das classes de história da arte –tive excelentes professores na matéria- fui tecendo conforme caminhávamos de um lado para outro. O estilo românico, que surge num canto de uma praça, ou dobrando uma esquina. Sólido, pesado, escuro, quase sem janelas, como reflexo de uma espiritualidade que muito tinha de temor, e não se atrevia a levantar o olhar aos céus. As virgens românicas, sentadas, com a criança no colo, amparando-a, mas de olhar distante. O majestoso gótico –inicial, tardio, ou isabelino- com suas altas torres, agulhas, arcobotantes que apóiam a audácia da altura que se eleva, em petição confiada. Luz, muita luz entrando pelos seus vitrais, e as virgens deixam de estar sentadas, se incorporam de pé, e o menino desloca-se lateralmente, entre os braços, enquanto os olhos de Nossa Senhora estabelecem o diálogo com o interlocutor que acode à sua intercessão. Os monumentos mudéjares, ou mouriscos, dos árabes que morando em território cristão mantinham a sua própria cultura que se refletia na arquitetura. O estilo mozárabe, de cristãos que viviam em território dominado pelos árabes, e também plasmavam a cultura em monumentos próprios.

Ainda nos aguardava outra visita geral antes de regressar a Madrid. Paramos num bar para uma rápida refeição –sempre com base em tapas e sanduíches- e partimos para Ávila.

Ávila surge com o perfil inconfundível conforme nos aproximamos dela. As muralhas se recortam no horizonte, rodeiam toda a cidade antiga ao longo de 2500 metros, com 85 torres e mais de 2000 alméias. São talvez as muralhas medievais melhor conservadas do mundo.

O nosso passeio ao redor das muralhas teve uma parada obrigatória junto à estátua de Santa Teresa, natural da cidade. Seguindo a tradição as mulheres do grupo fizeram uma foto junto da estátua, prestando assim homenagem –e pedindo ajuda- a esta mulher do século XVI que teve voz de comando, personalidade, e liderança num universo predominantemente masculino.

Antes de sair, houve quem seguiu a recomendação de comprar as Yemas de Santa Teresa, uns doces de ovos típicos da cidade. No final da tarde, voltamos a Madrid, após um percurso de 200 km e com uma enorme quantidade bagagem cultural que, certamente, terá o seu desdobramento com o passar dos anos. A cultura –como os monumentos que contemplamos, como as catedrais- não se improvisa a modo de fast-food. É preciso o decantar do tempo, o cultivo do espírito, a familiaridade com a história.

5 de Outubro: Toledo

Dedicamos o seguinte dia a Toledo, outro ponto obrigatório para quem passa alguns dias em Madrid. Situado ao sul de Madrid, a 50 km, Toledo é também outro monumento patrimônio da humanidade. Capital imperial nos tempos de Carlos I e de Felipe II (que trasladou a capital a Madrid, a finais do século XVI), foi também capital dos Visigodos, a partir do século V.

Toledo é o símbolo do convívio de culturas e religiões: judeus, muçulmanos e cristãos. E desse convívio resulta o encanto especial de Toledo. Suas ruas estreitas – na juderia, o bairro judeu-, seus inúmeros monumentos cristãos –como a Catedral, de estilo gótico, sede do Primaz da Espanha- que possui um museu de arte sacra fabuloso. Toledo que, no dizer de Marañon, tinha na época de El Greco quase 100 monumentos religiosos entre conventos, igrejas, catedrais, mosteiros e basílicas. A cidade, na época, no final do século XVI não tinha mais de 40 mil almas. As ruas de Toledo respiram um ar medieval, onde se percebe o aroma dos séculos. E também um ambiente de lenda, de romance, de amores –sadios e proibidos- e o ruído dos próprios passos, quando se caminha sozinho, parece mesclar-se com o tilintar das espadas de algum duelo de cavaleiros que estavam tirando a limpo a questão da honra de cada um.

Mas não teríamos tempo de contemplar os detalhes e nos focamos numa visita geral à cidade. A praça central, Zocodover, à qual chegamos caminhando porque o ônibus não pode circular na cidade. Do lado da Praça o Alcázar de Toledo, que permanece fechado, pois deve se converter num museu do exército espanhol.

Relatei o episódio da resistência do Alcázar durante a guerra civil espanhola. As tropas nacionais foram cercadas pelas republicanas que tinham como refém ao filho do general que comandava as tropas do Alcázar, e ameaçaram com matá-lo caso não entregasse a fortaleza. O general Moscardó manteve-se firme e contam que até jogou a arma dele do alto do Alcázar dizendo que não o entregaria nunca e que se não havia armas para executar o próprio filho ali estava a dele. Fiz notar que, apesar do desprestígio das figuras que lutaram do lado de Franco na guerra civil na Espanha de hoje, governada pelos socialistas, o nome do General Moscardó se mantém na rua lateral do Alcázar, como símbolo de uma coragem impar.

Toledo é também a cidade de El Greco, pintor do século XVI que viveu e morreu lá. Muitas das suas obras se encontram em Toledo, mas como o tempo urgia nos decidimos por uma das imprescindíveis: “O enterro do Conde de Orgaz”, na Igreja de São Tomé. Permanecemos contemplando o quadro –que se mantém perfeitamente desde o século XVI- com os seus dois planos – o terreno e o celestial -, as figuras alongadas representativas do estilo místico de El Greco, o convívio de cavalheiros com os santos, os mortais e os que já estão na glória, e o anjo carregando a alma do senhor de Orgaz, como se de uma criança se tratasse-, ajudando no parto para o mundo celestial.

Uma surpresa muito especial nos esperava em Toledo. Nesse mesmo dia, no final da tarde, se inauguraria a exposição dedicada ao cinqüentenário da morte de Gregorio Marañón, médico, humanista, escritor, um símbolo da cultura espanhola. A exposição vinha sendo realizada em várias cidades, e agora era a vez de Toledo, cidade muito querida de Marañón. Lá tinha o famoso médico uma casa de campo –um cigarral, assim se chamam em Toledo essas casas campestres- e lá escreveu a maioria dos seus livros. Entre outros, “El Greco y Toledo”, onde Marañon realiza uma análise profunda do pintor e afirma que foi Toledo quem ajudou a desabrochar a pintura mística de El Greco, e lhe possibilitou o crescimento artístico.

A exposição seria inaugurada à noite, mas o diretor –conhecido nosso- teve o fantástico detalhe de abri-la para nós no final da manhã. E ali, em 45 minutos, Antonio López Veja, Diretor da Exposição e uma das maiores autoridades na vida e obra de Gregorio Marañón, nos brindou uma visita guiada, com explicações, comentários e histórias que resultou num evento inesquecível, além de ser um verdadeiro banho de cultura. Em todos os que assistimos ficou gravado o seu comentário inicial: Marañón era um liberal, um homem que convivia e se entendia com todos, mesmo com os que pensavam de modo diferente; e colocou essa divisa como norma da sua vida e os seus talentos e prestígio enorme ao serviço da sociedade. E aprendeu o espírito liberal na sua casa, onde contemplava como os intelectuais que de manhã publicavam na imprensa idéias contrárias, eram capazes de tomar café com o seu pai, de tarde, em animada tertúlia (Leia os comentários sobre Marañon feitos por um dos estudantes que esteve na exposição). Foi um verdadeiro privilégio, com fecho de ouro: Antonio nos entregou o catálogo da exposição, com uma dedicatória carinhosa para a SOBRAMFA. O Catálogo incluía um DVD com muitos dos comentários que já nos tinha brindado, e tivemos oportunidade de vê-lo no ônibus no dia seguinte, rumo a Andaluzia.

Nesse dia, saindo da exposição, almoçamos todos juntos. Uma conversa animadíssima, de um par de horas, para preparar o congresso que começaria o dia seguinte: os integrantes foram expondo as expectativas, as dúvidas, os sonhos que trouxeram na viagem. As tapas circulavam na mesa redonda que tivemos de improvisar – houve certa confusão no restaurante, pois éramos 19- e as conversas fluíram com naturalidade….mas em inglês!! O Dr. Josh Freeman e a sua esposa Patricia Kelly, que integraram nosso grupo nesses dias, foram os moderadores e todos tiveram que ajeitar-se para expor em inglês as suas idéias. Foi outro momento inesquecível, no ambiente Toledano, tão propício para conversas humanísticas, e para os sonhos que envolvem como nuvem a cidade do rio Tejo.

Antes de regressar a Madrid, houve a dispersão típica em busca de lembranças. As recomendações já tinham sido dadas: Marzipão (produto de amêndoas, típico de Toledo) e as bijuterias “damasquinadas” (em preto e ouro), outro símbolo toledano. Naturalmente houve quem pensou em comprar alguma espada de souvenir, mas ninguém se decidiu pensando que não seria simples voltar em avião com uma espada de Toledo na mala.

É possível humanizar a Medicina? Reflexões a propósito do uso do Cinema na Educação Médica

Staff Medicina Leave a Comment

O artigo “É possível humanizar a Medicina? Reflexões a propósito do uso do Cinema na Educação Médica”, de minha autoria, foi publicado na revista O Mundo da Saúde, v. 34, n. 3, do período de julho/setembro de 2010.

Veja o resumo a seguir e faça o download do artigo em PDF.

A questão central do presente artigo traduz-se numa pergunta: É possível humanizar a Medicina? A já longa experiência que o autor possui no uso do Cinema na Educação Médica –em âmbito nacional e internacional- brinda elementos para responder essa questão vital. E a resposta chega desdobrada, a modo de fatorial de um produto, em outras questões menores e nas correspondentes respostas. Em primeiro lugar: O que é preciso humanizar? Projetos de humanização que não atingem a pessoa, o ser humano, restringindo-se ao âmbito de políticas públicas, não são bem sucedidas. A seguir, coloca-se a segunda questão: Como se humaniza com eficácia? Não basta a boa vontade, e a dedicação entusiasta, para conseguir humanizar de modo sustentável. É preciso metodologia. Em terceiro lugar, uma questão pouco ventilada nos fóruns humanizantes: Quanto custa humanizar? Enquanto se continue destinando os maiores orçamentos à tecnologia, e se deixem as tentativas de humanização por conta do voluntariado e sem o apóio de investimentos financeiros, não será possível a transformação que a humanização pretende. Finalmente, a questão crítica: Queremos, de verdade, ser humanizados? Porque humanizar implica chegar ao âmago do ser humano, que protagoniza todos os processos de saúde, transformá-lo, criar um compromisso de ordem pessoal, enfrentar desafios profissionais e pessoais. Humanizar é, pois, recolocar-se na vida como pessoa, assumir uma postura humanística, para deste modo fazer do próprio existir um foco de humanização efetiva: na medicina, e na vida.

Aos Cem Anos da Morte de Machado de Assis

Staff Colaboradores Leave a Comment

Por Sérgio Sardinha de Azevedo

    No dia 29 de setembro de 1908, o Rio de Janeiro assistia à morte do maior escritor brasileiro: Machado de Assis. Com ele, a literatura brasileira havia conhecido não somente um estilo novo mas, sobretudo, uma acuidade intelectual penetrante, com maturidade suficiente para analisar e compreender personalidades, acontecimentos, instituições e correntes de pensamento.

    Quando Machado morreu, o século XIX havia terminado há pouco tempo, deixando como legado o materialismo, o cientificismo, o ateísmo, o agnosticismo e uma enxurrada de “ismos” que afogou diversas mentes promissoras. No entanto, Machado ensinara a desconfiar dessas escolas de pensamento, desarticulando seus longos raciocínios com um olhar irônico. Permanecia, porém, a dúvida: “Todos os “ismos” simplesmente não passam de um: o pessimismo?” Machado não respondeu essa pergunta. Assim como Brás Cubas não transmitiu “a nenhuma criatura o legado da nossa miséria”, Machado morreu sem legar à posteridade a solução do enigma.

    Enquanto o corpo de Machado de Assis atraía uma multidão de visitantes à sua casa no Cosme Velho, vivia na então capital do País um menino chamado Gustavo, estudante do Colégio Pedro II. Destinado a receber a forte influência do pensamento do século XIX, passaria do cientificismo para o materialismo, defenderia o ateísmo e se perderia nos labirintos do agnosticismo. Nas letras, teria sempre Machado como seu mestre. Tornando-se escritor, devido a um de seus livros em que analisa a obra machadiana, seria elogiado por ninguém menos que Manuel Bandeira, o qual afirmaria que ele havia escrito “um dos livros mais belos e mais fortes de nossas letras”.
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Marta Braga: “Lições de Gustavo Corção”

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Marta Braga: “Lições de Gustavo Corção”. Quadrante. 2010. 139 pgs.

    Este livro –uma agradável surpresa que não esperava- brindou-me a oportunidade de lembrar, com imenso carinho, a obra de Gustavo Corção. Voltei a viver momentos inesquecíveis, da ha mais 30 anos, quando, recém chegado ao Brasil, fiz as minhas primeiras incursões na literatura nacional. Posso dizer que Corção tem sua parte de responsabilidade na minha formação –como médico, como professor e também como amador nas aventuras humanísticas- e, sem dúvida, foi um interlocutor necessário de um Brasil que aprendi a amar naquela altura. Um Brasil claro, diáfano, com os seus defeitos, como qualquer povo, mas alegre e sincero. E no meio dessa descontração, dessa jinga que se estendia do futebol ao samba, envolvendo também as relações humanas – a insuperável afabilidade do povo brasileiro!- havia quem pensava e escrevia de modo claro e elegante. Valha o exemplo quando descreve os tempos em que Corção e um grupo de intelectuais arquitetavam uma revolução contra a burguesia que “naturalmente dava uma trégua para almoçar, pois e difícil manter essa atitude diante de uma mesa posta, e de uma senhora que se desculpa por causa do pudim que se partira na forma”.

    Foi um amigo quem me recomendou Corção. “Não deixes de ler seus livros. Continua escrevendo no jornal, é muito criticado, ficou um pouco azedo, mas é contundente. Além do que escreve muito bem; ajudará a melhorar o teu português!”. Agradeço de por vida essa recomendação. E, aos poucos, fui lendo as principais obras de Gustavo Corção, anotando idéias, recolhendo fichas que utilizei –e utilizo até hoje- nas minhas aulas e nos escritos que me atrevo a publicar aqui ou acolá. Agora, lendo este livro de lembranças, vejo que a autora recolhe trechos que eu também tenho anotados nos meus fichários. Senti falta de outros, mas é inevitável: cada um apanha aquilo que mais lhe afeta, o que lhe atinge e por isso mesmo lhe servirá para construir-se e ajudar os outros na sua formação.

    Passados muitos anos, relendo estas páginas com o sabor da experiência de vida, entendo que naquele Brasil que aprendi a amar, talvez as formas de dizer dos intelectuais nem sempre foram felizes, e enfrentaram críticas, suscitaram polêmicas. Mas, sem dúvida, havia conteúdo. Hoje, vivemos tempos onde todos se comunicam, falam, opinam, mas o que falta mesmo é conteúdo. Somos especialistas em comunicar-nos, em delivery –seja de pizza ou de qualquer outra coisa- mas carecemos de substância. Estamos rodeados de uma cultura epidérmica onde graça a mediocridade, mesmo em ambientes acadêmicos. Tudo é rápido, direto, sempre na versão mais atualizada, com pavor de ficar anacrônico, nem que seja por minutos. Vem a minha cabeça uma frase de Corção que tenho anotada num papel, já amarelado pelo tempo, mas de contundente atualidade: “A novidade é o bálsamo das vidas vazias”.

    E nos cenários acadêmicos, nas usinas formadoras –sejam os colégios, a universidade, a própria família e grupos afins- faltam referencias de cultura, pessoas que saibam integrar os conhecimentos e os transmitam de modo claro, convidando a pensar, pois é a resposta do educando diante das questões oportunamente colocadas pelo mestre o que de fato lhe cultiva, lhe faz crescer. Temos especialistas, sim; de tudo. Tem quem sabe muito de esporte, ou de vinho, ou de pintura, ou de computadores, ou de cinema, teatro e literatura. Mas é um saber setorial, enorme talvez, cachoeira de conhecimentos que afoga mas não refresca. Falta a harmonia de conhecimento, que cria um ambiente agradável onde o espírito humano consegue se desenvolver. São mutirões de conhecimento por atacado, que não se integram na vida real, porque ninguém sabe fazê-lo: nem aquele que detém o conhecimento –que costuma ser um ignorante em quase todas as outras matérias da vida- nem, muito menos, quem ouve por não saber por onde deve começar para incorporar tamanho volume de informação, e qual a proporção necessária para melhorar sua cultura. Como bem adverte Corção “uma filosofia que não pode ser vertida em conversa familiar, ou em história contada às crianças” é cultura de laboratório, não da vida.

    Este livro será uma descoberta para muitos. Outros, como no meu caso, o lerão de corrido, tropeçando com os pensamentos que alimentaram sua cultura no seu dia, que é tanto como dizer, idéias que ajudaram a posicionar-se na vida. Pois a cultura é isso: um saber posicionar-se no mundo, começando pela vida própria, pelo conhecimento próprio, outro dos temas favoritos de Corção. Encontro este parágrafo numa ficha, esta sim, já transcrita no computador. “Acho belíssima essa voracidade do homem, e essa capacidade de trazer para casa, para a sala de estar, sob as espécies do assunto, as guerras, os terremotos e os ciclones. Por outro lado, porém, acho lúgubre essa avidez de engrossar por fora a ganga do eu, numa capitulação da maior das aventuras, que é a conquista de si mesmo, a descoberta de sua própria alma. Há duas iluminações na face de um Marco Polo: de um lado o brilho ensolarado da boa aventura; de outro a verde lividez do homem que foge de si mesmo.” Ler, ou reler, Corção: eis o recado importantíssimo que nos brinda esta obra –um acerto editorial- que é um trailer de um filme apaixonante.

O Concerto: Arte e Beleza que nos abrem à Esperança

Staff Filmes 7 Comments

     Voltei de uma viagem com o nome do filme na agenda. Não o conhecia e logo vi que não seria fácil de conseguir, pois não constava nos catálogos nacionais que costumo consultar. Mas, finalmente, me fiz com ele, coloquei-o no computador, e esperei a ocasião. Não apenas ter tempo, mas sim disposição. A minha não era das melhores.

     Um filme, igual que um livro, pode ser ótimo, mas tem o seu momento; enfrentá-lo quando falta sintonia, rende dividendos equivocados, julgamentos indevidos. E, o que é pior, perde-se uma ótima ocasião de estabelecer um diálogo com ele, de aprender e inspirar-se. A arte é isso: uma provocação ao diálogo interior, saber freqüentar nossa intimidade, tirar dali forças e sentido para viver a vida com categoria. A vida supera a arte, mas para viver bem, a beleza que nos chega pela arte é imprescindível.

     A ocasião surgiu no passado domingo. Estava saindo de casa para jogar tênis com um amigo, quando tocou o telefone. “Desculpe, tive um imprevisto, não vamos poder jogar”. E agora? Tudo o esquema arrumado para a manhã de Domingo. Há sempre a possibilidade de buscar outro parceiro, mas de última hora, as chances de sucesso são pequenas. Fui dar uma breve corrida –afinal estava com indumentária esportiva, e trocar-se sem fazer esporte tem sabor de fracasso- e voltei pouco depois. Nesse momento, lembrei do filme e, curiosamente, me senti inspirado. Deixei rodar o filme e, em poucos minutos, estava conquistado. A música me convidava ao diálogo.
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