(Changeling). Diretor : Clint Eastwood. Atores: Angelina Jolie, John Malkovich, Jeffrey Donovan, Michael Kelly, Colm Feore, Jason Butler Harner, Amy Ryan. 140 min.
Acabam de sair as indicações para o Oscar de 2009. Não assisti à maioria dos filmes indicados, mas este – a que assisti e admirei – é um grande ausente da lista. Não haveria como deixar de fora Angelina Jolie, que inunda a tela com a personagem que é o filme, todo ele, em cada um de seus fotogramas. Fora isso, o silêncio. A direção por conta de Clint Eastwood – cada vez melhor, infinitamente melhor – não foi contemplada. É uma história real, enfatizam alguns, tentando assim diminuir o mérito da obra de arte, o que equivaleria a dizer, por exemplo, que os retratos de Rembrandt ou de Velásquez não teriam valor porque espelham pessoas reais… Uma boa história real deve não apenas ser encontrada, como sobretudo contada. Bem contada. É o que faz com muita elegância Eastwood, preparando com suavidade o terreno para que “Christine” – a nossa Angelina Jolie – desfile com imensa classe. Os demais são coadjuvantes – um decorado de imenso bom gosto oportunamente colocado pelo diretor. É trabalho – insisto – de primeira categoria. Estamos em 1928, em Los Angeles, Califórnia. Christine Collins é mãe solitária, porque o pai do rapaz – diz-se no filme – “não quis assumir o pacote que lhe chegou junto com o filho, um pacote que continha responsabilidade”. Trabalhadora, competente, vive para o filho, que subitamente desaparece. A polícia de Los Angeles, que divide os lucros da corrupção escandalosa com os políticos de plantão, traz de volta um rapaz e o entrega a Christine. Ocorre que este não é o seu filho, e como a polícia quer tirar o morto de cima (não há dito popular mais perfeito para a situação), dá o caso por encerrado, atribuindo o não-reconhecimento pela mãe às emoções e maus tratos sofridos pelo rapaz. Mas Christine, demonstrando uma perseverança gigantesca, não cessa de reclamar o seu verdadeiro Walter de volta. Esta é a história do filme, uma situação absurda que se amplifica quando se lembra que se trata de história real. Mas o encanto da fita é outro: o poder de liderança serena de Christine que, no seu empenho de mãe, contribui para mudar a sociedade que a rodeia. John Malkovich dá vida ao Reverendo Briegleb, um Pastor que devota seus melhores esforços a combater a corrupção das autoridades de Los Angeles, e a defender o seu rebanho de fieis das garras desses bandidos: “Fiz da luta contra a corrupção a missão da minha vida – diz à Christine, no intuito de ajudá-la. Ela, sempre discreta, sabe se colocar em sua posição, e diz: “Eu não tenho missão, reverendo. Eu somente quero o meu filho de volta”. Essa mulher aparentemente sem missão, que busca o concreto, acabará removendo a sociedade, desmascarando injustiças, ajudando as pessoas que cruzam seu caminho com uma eficácia contundente. Em nossos dias, a palavra missão encontra-se muito desgastada. Eu, pelo menos, estou farto dela. Trazia algum sentido quando antes se entendia por “missão” algo que imprimia rumo à totalidade da vida da pessoa. Missão seria – para usar uma linguagem atual – a operacionalização da vocação de cada um, seu “modus vivendi”. Hoje, o termo “missão” não passa de título de uma frase de efeito que as empresas penduram entre molduras no hall de entrada, buscando com isso impressionar os clientes e fazê-los crer que os membros daquela organização sempre se pautam por valores nobres. Nada além de um refrão de significado confuso, repleto de chavões, que o mundo corporativo utiliza como cartão de visitas.Da missão – a qual nos animam a cumprir como se a empresa para a qual trabalhamos fosse um time (“onde você é muito especial”, dizem; todos somos especiais nestas horas…) – passa-se à “visão”, que asseguram ser o contorno de um novo mundo. Outro golpe de efeito. E assim nos perdemos em palavras sem sentido, em “missões” que nos ocupam durante o horário comercial, com direito a bônus e dividendos, e que facilmente esquecemos diante da primeira oferta de emprego tentadora. É deste modo, com nomes atualíssimos e globalizados, como o mundo corporativo abocanha as palavras que significavam atitudes vitais, e as suga até deixá-las empalhadas, sem vida, de plástico. De grife, certamente, mas de plástico. Perdemo-nos em reuniões estratégicas, em projetos de gestão, em retiros corporativos e encontros motivacionais, mas deixamos de abordar o verdadeiro núcleo da questão: o compromisso, único elemento capaz de retomar para valer a verdadeira missão de vida de cada um. Os diagnósticos dos problemas são periféricos e recaem sobre processos que se julgam deficientes. Daí vem a luta pela certificação, a obsessão pela qualidade. Surgem as comissões e as consultorias, apuram-se detalhadamente os passos dos assim chamados “processos”, qualificam-se as instituições. Mas nas pessoas, nessas nunca se toca. Não que falte boa vontade em tudo isto; falta, sim, profundidade, sobrando, talvez, muita ingenuidade, pois se busca suprir no sistema o que, no final das contas, é falha individual – da pessoa, de cada um de nós – a qual deve ser sanada com compromisso e responsabilidade pessoais. Vem à lembrança certa ocasião onde me convidaram para dar uma palestra sobre planejamento e sentido da vida no mundo corporativo. Viajei com o amigo que facilitou o meu contato à empresa organizadora. O evento ocorria num resort de alto luxo, no sul do País. Enquanto alinhavava as idéias para a conferência, comentei a esse amigo que, embora eu tivesse certo domínio do tema, por estar envolvido em tarefas de formação de pessoas, pouco conhecia acerca do “outro lado”, isto é, do mundo corporativo. Ele me olhou, sorriu, e disse: “Vou te contar um segredo. Esse “outro lado” não existe. É pura fachada. Fale de coração aberto, dê o recado e deixe o pessoal pensando”. Foi um alívio. E um aprendizado que me abriu os olhos. Não parece que tudo isso se reverta fácil e rapidamente, mas a postura de Christine Collins no filme trouxe nova luz ao tema: “Não tenho missão, apenas quero meu filho de volta”. É o amor pelo concreto, pela pessoa, donde arranca a liderança das mulheres. E através dessa liderança – perfeitamente centrada na questão que lhes ocupa – é como conseguem dissecar as situações, revelar as verdades e fazer da ética um elemento doméstico e quotidiano. Exemplos? Uma infinidade. Minha professora no primário, que sem deixar de elogiar as esmolas que as crianças (com a ajuda dos respectivos pais, naturalmente) davam para os esfomeados da África, costumava sugerir antes do recreio: “Além das esmolas, dividam com o colega o lanche que vocês têm na mochila. As crianças famintas da África estão um pouco longe, mas o coleguinha está logo ai”. Ou então a minha avó, grande mulher, que quando ouvia falar de feminismo dizia: “Vamos com calma, que eu não pretendo dirigir caminhão!”. Parece que o início das mudanças para acabar com as hipocrisias corporativas poderia partir do que uma aluna me dizia, em certa ocasião: “Eu não quero que a faculdade me faça esquecer o que aprendi com a minha avó”. O amor delicado pelo caso concreto é sabedoria feminina, torna diáfano o caminho do compromisso, e até parece facilitá-lo. Faz muitos anos, elogiei uma paciente pela família maravilhosa que tinha. “Agora sim, doutor. Mas, quando nasceu meu quarto filho, o meu marido – o marido estava fora, na sala de espera de meu consultório, enquanto eu a atendia – chegava todos os dias de madrugada. Eu, sempre arrumada, a mesa posta, esperando ele chegar: ‘Você deve estar cansado, meu bem; vamos jantar’, dizia-lhe. E assim dias, semanas, meses. Um dia, na cama, pensou que eu estivesse dormindo, suspirou e disse em voz alta: ‘Sou uma besta. Não sabia a mulher que eu tinha’. Depois disso, ele nunca mais chegou tarde”, concluiu. E ainda acrescentou: “Doutor” – bateu na mesa e se aproximou de mim, dizendo: “mulher que se preza coloca o homem na linha!”. Gosto pelo concreto, dar nome aos bois. Faz algumas semanas participei de uma reunião com a Diretoria de um hospital. Problemas que surgem, equipes médicas que não acabam de se acertar, processos pouco claros. Uma das médicas – a mais jovem da equipe – pediu a palavra. Com delicadeza, mas de modo claro, verbalizou o que todos estávamos pensando, mas ninguém dizia: “O que falta é compromisso. Precisamos de profissionais que assumam os problemas, que não os empurrem com a barriga. As pessoas não querem se comprometer, e desse modo não vamos a lugar nenhum”. A reunião continuou, tomaram-se decisões, falou-se duro e, no final, a colega foi elogiada pelo Superintendente, que agradeceu a sua sinceridade que facilitou a todos o caminho. Ortega, em seu ensaio “Estudos sobre o Amor”, rende homenagem à sabedoria feminina, apostando nela para melhorar o mundo. Diz o filósofo numa passagem visionária: “Se algumas dúzias de mulheres, habilmente colocadas na sociedade, educaram sua personalidade até fazer dela um perfeito diapasão de humanidade, um instrumento de sensibilidade para formas de vida melhor, conseguirão mais do que todos os pedagogos e os políticos. A mulher exigente fará com que o coração dos homens bata em novo ritmo, despertará ideais inesperados nas suas cabeças, novas ambições e projetos, a existência toda marchará em cadência ascendente e o país onde esse feminismo apareça florescerá triunfante uma histórica primavera, toda uma vida nova”. São esses os resultados que Christine consegue na sua busca, decidida e comprometida, para recuperar seu filho Walter.Esse é o grande recado de um filme belíssimo, que é também duro e cru. Mas a esperança invencível de Christine é contagiante. Talvez porque seja mulher elegante, discreta, encantadora. Ou porque até se torna parecida com Claudette Colbert, que protagoniza o filme pelo qual Christine torce, e que acaba ganhando o Oscar. Uma homenagem de Eastwood a Frank Capra e ao cinema. “Aconteceu naquela noite” conquistou todos os prêmios do Oscar de 1934: melhor filme, diretor e atores. Clark Gable levou o seu, enquanto estendia os cobertores – as muralhas de Jericó – entre as duas camas do quarto do hotel. E também Claudette, elegantíssima e objetiva, que levanta discretamente a saia para conseguir a carona que lhe permite fugir. O Oscar que “A Troca” não levará, Clint Eastwood o credita àquele filme encantador, a todas as mulheres que Christine representa, e a esperança de uma sociedade melhor, fruto da serena liderança feminina. Esse sim é um Oscar “honoris causa”.