John Berger & Jean Mohr: “A Fortunate Man: The story of a country doctor”. The Penguin Press. London. 1967.
Tomei conhecimento deste livro no passado mês de Abril, em New Orleans. Foi durante o Congresso Anual da STFM- Society of Teachers of Family Medicine, congresso ao qual assisto habitualmente. Um dos últimos dias, tendo já realizado as minhas apresentações, vi no programa uma sessão intitulada “Reading A Fortunate Man”. Nada sabia do livro, mas conhecia a maioria dos apresentadores, alguns meus amigos pessoais, e reconhecidos líderes no campo da Medicina de Familia, prestigiosos educadores. Fiquei encantado com as historias relatadas, e com o envolvimento dos professores com o livro. Decidi compra-lo, e pedi para o meu amigo, o Dr. John Frey, um dos apresentadores, o emocionante texto que leu no momento, onde confessa ter sido esse livro o que lhe fez não desistir de ser médico. Está em inglês, mas vale a pena lê-lo com calma (e, se necessário, com dicionário). Um testemunho impactante.
O livro é excepcional. Não é uma biografia, nem mesmo uma reportagem sobre Sassall, um médico rural no interior da Inglaterra. É um verdadeiro ensaio, pois a vida do médico é pauta para considerações profundas que incitam à reflexão. E, lá no fundo, surgem os temas candentes com os quais todo médico –que vive de verdade sua vocação profissional- deve defrontar-se na vida. Como lidar com o sofrimento dos outros, a tremenda responsabilidade da confiança que os pacientes depositam no médico –uma especial fraternidade que lhe confere o poder de adentrar-se na intimidade alheia. E, também, o próprio sofrimento, a angústia de saber que sempre se pode fazer mais. E a solidão, porque no íntimo das decisões profissionais não há com quem compartilhá-las. Alguns trechos são magníficos, serviriam de base para ótimas discussões acadêmicas, com fundo filosófico. Vão alguns exemplos: (alguns traduzidos).
Intimidade. Existe uma intimidade toda especial entre o paciente e o seu médico que transcende a intimidade dos amantes. Algo muito próximo da intimidade que se tem na infância. Nos entregamos ao médico, abrimos nossa intimidade, como o faríamos quando crianças, e de algum modo o envolvemos nesse sentimento de família. Imaginamos o médico como um membro honorário da família. Não como os pais, mas sim como um irmão ou irmã mais velho.
A morte. O médico tem familiaridade com a morte. O chamamos para que nos cure e nos alivie, e se não puder fazê-lo, o convocamos para que seja testemunha da nossa morte. O médico circula confortavelmente –é isso que pensamos- entre a vida e a morte.
“Recognition”, palavra difícil de traduzir, porque quer significar identificar, entender, compreender, contato empático. É a pura ação médica, conforme o autor descreve, traduzindo livremente: “A função do médico é reconhecer (entender, compreender) o ser humano. Sei que utilizo esta palavra para incluir técnicas complicadas de psicoterapia, mas na essência, essas técnicas são justamente recursos para entender o ser humano. Para compreender o doente, o médico deve primeiro conhece-lo como pessoa. São cada vez mais raros os médicos que sabem diagnosticar bem; não porque lhes falte conhecimento médico, mas porque não são capazes de levar em conta todos os fatos relevantes –emocionais, históricos, ambientais- e integrá-los com os físicos. Buscam aspectos específicos ao invés de buscar a verdade sobre o enfermo, que lhes sugeriria muitas outras dimensões. Um bom médico é aquele que é capaz de satisfazer as profundas e, com frequência, silenciosas expectativas do enfermo com um sentido de fraternidade. O médico o conhece, sempre. Pode falhar às vezes, mas possui o desejo constante e profundo de um professional que faz questão de conhecer o ser humano”.
Testemunho das vidas dos pacientes. Faz mais do que trata-los. É um testemunha das vidas dos pacientes. Os pacientes não se referem a ele como tal, e somente pensam nele quando precisam. É uma espécie de escrivão que registra as vidas dos que tem à volta. The clerk of their records.
Ativismo. Exceto quando está tratando com os pacientes, é uma pessoa impaciente. É incapaz de estar sem fazer nada, incapaz de descansar. Dorme fácil mas no fundo agradece quando é acordado para atender alguém durante a noite. Custa-lhe aceitar uma vida normal. Talvez porque, sendo consciente ou não, preenche com trabalho o tempo que dedicaria e refletir sobre as angústias que lhe cercam, provenientes do sofrimento dos seus pacientes.
Honorários. As duas últimas páginas são excepcionais, pois abordam o difícil tema do valor de uma atividade como a do Dr. Sassall. Qual é o valor social que se dá a aliviar o sofrimento e a dor? Quando se trata de valorar um procedimento (cirúrgico) ou uma descoberta científica, as medidas são mais adequáveis. Porém, quando do que se trata é de medir a contribuição normal e quotidiana de um médico rural, de um generalista, o assunto é mais complicado.
As Crises. O ponto anterior, não saber medir o valor do ordinário, faz com que o idealismo médico da juventude se transforme em cinismo, pois o médico já não é capaz de saber o valor da sua vida, e externamente também ninguém lhe ajuda, nem reconhece isto.
A conclusão que se pode tirar disto, é que é preciso uma motivação intrínseca e transcendental para superar essas crises, que sempre chegam. O vemos diariamente.
Erros. Tem mais consciência dos próprios erros do que a maioria dos médicos. Não porque cometa mais, ou porque saiba menos. Mas porque chama erros o que muitos outros médicos denominam –talvez com alguma justificativa- complicações desafortunadas.