G.K. Chesterton: “Ortodoxia”

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G.K. Chesterton: “Ortodoxia”. Ed Mundo Cristão. São Paulo. 2007. 263 pgs.

Chesterton - Ortodoxia     Desta vez foi sugestão de um amigo incluir um capítulo de Ortodoxia na nossa reunião mensal onde tratamos temas de atualidade.  Mais do que uma reunião é  uma conversa com troca de impressões: aquilo que os intelectuais denominavam tertúlia, logicamente com café incluído.  E como ler um capítulo implica situá-lo no contexto, debrucei-me novamente sobre o clássico de Chesterton.

     Longe de mim fazer aqui um resumo desta obra que é a trajetória biográfica e de conversão do escritor inglês. Se não se deve isolar um capítulo, menos ainda pode se apresentar uma versão reduzida deste importante escrito. Os conversos ingleses são assim: quando entendem que devem justificar –para o mundo e, principalmente, para eles mesmos- sua mudança de rumo ao encontro com a fé, escrevem uma obra seminal: basta lembrar a Apologia pro Vita sua, do Cardeal Newman. E, em outro sentido, o De Profundis, de Oscar Wilde. Por tanto, nada de resumos; apenas um modesto comentário.

     O tom irônico e sincero de Ortodoxia é introduzido no prefácio desta edição. Lá se comenta que certa vez o jornal London Times pediu a alguns escritores que respondessem à pergunta: “O que é há de errado com o mundo?” Chesterton enviou a resposta mais sucinta. “Prezados Senhores: Eu. Atenciosamente. G.K. Chesterton. Este é o perfil do escritor inglês, e o seu propósito: vamos corrigir o que está errado comigo, sem gastar energias em criticar os outros.

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Machado de Assis: Memórias Póstumas de Brás Cubas

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Machado de Assis: “Memórias Póstumas de Brás Cubas”. Abril. São Paulo, 1971. 173 pgs.

Memórias póstumas de brás cubasOs fóruns de humanismo com universitários –essa metodologia tão antiga, que parece estar sendo redescoberta, a formação pela leitura dos clássicos- me conduziram até Machado de Assis e seus personagens maravilhosamente perfilados. Seria interessante recolher aqui os comentários dos jovens universitários, que surgem como faíscas no encontro de Brás Cubas com a própria reflexão. Mas não é caso, até porque é processo que cada um deve experimentar de modo pessoal e intransferível.

Faíscas que podem provocar um incêndio, quando há disposição interior para refletir, e espelhar o próprio atuar no gabarito preciso que o clássico brasileiro nos oferece. Quer dizer, quando não se deixa adormecer a consciência na sonolência de ir tocando a vida. A advertência vem da própria personagem em revisão acurada da vida que levou. “Preferi dormir, que é um modo interino de morrer”.  O adormecimento requer conforto suficiente para evitar que os incômodos da consciência cutuquem e nos despertem para a realidade. “Virgília era o travesseiro do meu espírito, um travesseiro mole, tépido, aromático, enfronhado em cambraia e bruxelas. Era ali que ele costumava repousar de todas as sensações más, simplesmente enfadonhas, ou até dolorosas(…)Escrófula da vida, andrajo do passado, que me importa que existas, que molestes os olhos dos outros, se eu tenho dois palmos de um travesseiro divino, para fechar os olhos e dormir? (….)Para mim era aquilo uma situação nova do nosso amor, uma aparência de posse exclusiva, de domínio absoluto, alguma coisa que me faria adormecer a consciência e resguardar o decoro”.

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Uma Viagem pela Espanha: O Grupo Maravilha!

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O objetivo central da viagem estava bem definido: assistir à Beatificação de D. Álvaro del Portillo que teria lugar em Madrid, no dia 27 de Setembro de 2014. E assim foi. Mas, sem perder o foco da razão principal que agregou este grupo formidável, surgiu a oportunidade de visitar vários locais na Espanha central e, principalmente, de viver experiências inesquecíveis. De amizade, de companheirismo, de alegria e bom humor e, naturalmente, um mergulho cultural de alta densidade. As fotos que aqui se recolhem são apenas uma amostra destes dias inolvidáveis. As lembranças mais importantes –bem sabemos disso- não estão plasmadas nas imagens, mas as guardamos todos na cabeça e no coração. Foi um prazer imenso participar do grupo MARAVILHA.

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José Orlandis: “História breve do Cristianismo”

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José Orlandis: “História breve do Cristianismo”. Rei dos Livros. Lisboa. 1989. 200pgs.

A minha admiração pelo Professor Orlandis vem de longe. Homem de vasta cultura, historiador profundo, possui uma caraterística rara entre os que se aventuram a contar-nos a História: uma surpreendente capacidade de síntese. Orlandis consegue, mais uma vez, traçar em menos de 200 páginas a trajetória do Cristianismo. Seu relato, sucinto, preciso, funciona como o arcabouço que firma as linhas mestras do percurso da Igreja de Cristo. É como um esqueleto que define o perfil principal que depois, por conta do gosto e das possibilidades de cada leitor, poder-se-á preencher com estudos mais aprofundados, monografias, biografias específicas, e obras de maior porte. Mas as vigas de sustentação são essenciais para entender o conjunto do tema. A sua descrição ágil lembra os traços desses desenhistas admiráveis que com quatro riscos esboçam o perfil inconfundível do sujeito contemplado.

Algumas semanas atrás, após uma longa conversa com universitários sobre temas históricos, alguém perguntou-me qual seria o livro certo para se aprofundar no tema que tínhamos tratado. Meu conselho foi direto: “Leia um bom manual que desenhe o tema geral, o arcabouço. Depois podes partir para boas biografias –sempre um modo ameno de aprender Historia da mão dos personagens que a construíram. Mas, primeiro, um manual com crédito, desses que levam no título breve história de…”

Após a leitura deste pequeno grande livro, comprovo que o meu conselho foi certeiro. Orlandis desenha de modo esquemático o itinerário da Igreja. No plano doutrinal arranca dos tempos apostólicos e das primeiras controvérsias doutrinais que originaram os Concílios ecumênicos, passeia pelo ambiente que faz surgir as heresias, os cismas de Oriente e de Ocidente, para chegar na Reforma Protestante, e no Modernismo. Aborda sucintamente, mas com precisão admirável, as relações da Igreja com o poder civil, que gera a aliança da Igreja com o império que a amparava. Primeiro o Carolíngio, depois o Sacro Império Germânico, os Habsburgos espanhóis, e a França. Os Padres da Igreja, Santos, Imperadores e, naturalmente, os Papas são os figurantes deste magnífico índice ampliado e comentado da História da Igreja.

Nada é deixado de fora, tudo é contemplado. E tem o cuidado de advertir os temas que propositalmente são apenas citados, porque o espaço não permite maior extensão. Relato sóbrio, denso, completo. Um excelente perfume contido, como de costume, num pequeno recipiente. Uma leitura necessária e prévia a qualquer mergulho histórico de maior porte. Um recurso imprescindível –cito palavras textuais- “para que qualquer pessoa com o nível cultural comum aos homens de hoje, possa fazer uma ideia clara de como foram e do que representaram vinte séculos de História do Cristianismo”

Walt nos Bastidores de Mary Poppins: Educar com experiências inesquecíveis

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“Saving Mr. Banks” (2013). Diretor: John Lee Hancock. Emma Thompson, Tom Hanks, Colin Farrell, Paul Giamatti, Jason Schwartzman, Bradley Whitford, Annie Rose Buckley, Ruth Wilson 125 min.

saving_mr_banks     Assisti o filme, faz já alguns meses. Fascinou-me. Ainda sob o impacto das emoções, mandei uma mensagem para os meu irmãos, que moram na Europa. “Um filme encantador. Para os que éramos crianças nos anos 60. Um despertador de vivências”. Recebi reposta, quase imediata, de um deles: “A tua sobrinha foi assistir ontem com as amigas –todas na casa dos 20 anos- e adorou”.

     Lembrei da teoria do meu pai –muitas vezes comprovada na prática – de que há filmes, ou melhor, trilhas sonoras, que encantam as crianças (com perdão da minha sobrinha) mesmo que nunca o tenham visto antes. De fato, quando os primeiros netos chegaram e ele tinha, vez por outra, que ficar de babá junto com a minha mãe, colocava-lhes o CD de “The Sound of Music” (A Noviça Rebelde)…. e as crianças sorriam placidamente, ficavam calmas, serenas. Aproveitando o ensinamento, eu mesmo ofereci de presente –nessas festas de aniversário de um ano, que nunca sei o que dar, sempre é um dilema- não a música, mas o filme em DVD. Não uma vez, várias, muitas até. E parece –pelo retorno que tenho- que a estratégia continua funcionando.
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Humanizando as evidências com Cinema: da atualização científica ao conhecimento da pessoa

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A Medicina Baseada em Evidências proporciona qualidade na informação, atualização científica eficaz e relevante. Existe, porém, o desafio de fazer chegar esta qualidade técnica até o paciente, em linguagem inteligível. Torna-se necessário dissolver a técnica em humanismo para que o paciente possa assimilá-la. É função do médico entender a doença e entender o doente, saber integrar os conhecimentos objetivos com os aspectos que caem no âmbito da subjetividade. Conhecer a pessoa que tem a doença é tão importante como conhecer a doença que aquela pessoa padece. Humanizar as evidências se traduz em humanizar o relacionamento médico-paciente, saber entrar no mundo do enfermo com metodologia adequada, ampliando as perspectivas do cuidar. As humanidades em geral e o Cinema em particular são recursos educacionais que ajudam a humanizar o conhecimento científico, fazendo-o chegar até o paciente de modo acertado. Relata-se aqui uma experiência pedagógica em que cenas de filmes são utilizadas para provocar a reflexão que permite o exercício filosófico da profissão médica. Abdicar da reflexão é a causa principal da assim denominada desumanização da medicina.

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Stanislao Dziwisz: “Una Vida con Karol”

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Stanislao Dziwisz: “Una Vida con Karol”. La esfera de los libros. Madrid. 2008. 254 pgs.

una_vida_con_karol     A recente canonização de João Paulo II foi o estímulo que me fez tirar da prateleira este livro que lá descansava há um par de anos, da época em que o adquiri. Quem escreve é o atual Cardeal de Cracóvia que foi secretário de João Paulo II durante 40 anos, desde a sua ordenação –realizada pelo mesmo Karol Wojtyla- em 1963. São lembranças esparsas que emergem ao compasso do diálogo com o interlocutor, o vaticanista, Gian Franco Svidercoschi.

     Não há grandes novidades, pois é muito o que conhecemos do Papa polonês, que nos foi chegando ao longo dos quase 27 anos de pontificado, o terceiro maior da história da Igreja. Mas serve para destacar aspectos fundamentais da sua figura. O primeiro, sem dúvida, o muito que João Paulo II rezava: era um homem de oração, longa, profunda. “Sua capela privada era o lugar onde vivia os encontros pessoais com Deus. Passava lá o maior tempo possível. As freiras o encontravam muitas vezes lá, prostrado no chão, imerso nas suas preces(…) Não deixava de rezar. Misturava a preparação dos discursos com os mergulhos na capela, onde sumia-se em oração”.

     Da relação de Wojtyla com o Cardeal Wyszynski, primaz da Polônia, relatam-se alguns aspectos que eu não conhecia. Parece ser que quando Karol Wojtyla foi nomeado arcebispo da Cracóvia, não constava na lista de candidatos sugerida por Wyszynski. O secretário do partido comunista polonês orgulhou-se da nomeação e disse que tinha sido ele quem facilitou a nomeação de Wojtyla –pensando tratar-se de uma pessoa aberta e colaboradora, a diferença de Wyszynski que tinha enfrentado o regime, e padecido como vítima da repressão. Mas o provável é que o primaz atuou desse modo –omitindo o nome de Wojtyla- para não queimar o seu verdadeiro candidato. O atentado a João Paulo II acontece quando Wyszynski, já idoso e muito doente, estava morrendo. O primaz soube do atentado e arrancando forças conseguiu prolongar sua agonia por três semanas. Faleceu depois de ter falado com João Paulo II por telefone e certificar-se de que sairia com vida do atentado.
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João Guimarães Rosa: “Primeiras Estórias”

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João Guimarães Rosa: “Primeiras Estórias”. Ed Nova Fronteira. Rio de Janeiro, 2001.

guimaraes_rosa_primeiras_estorias     Ler Guimarães Rosa é sempre uma aventura pessoal, um envolvimento. Saborear os pensamentos que embrulham as personagens, salpicando narrativas e paragens. Sem a urgência de querer entender tudo, num simples degustar. Porque a estética carece de serenidade, de contemplação, desse tempo que hoje não queremos ter porque nos urge estar muito ocupados com o vazio. Somente a calma nos permite sintonizar com os relatos do escritor mineiro, que têm uma topografia agridoce, sumidas na circuntristeza. “Tudo se amaciava na tristeza. Até o dia; isto era: já o vir da noite. Porém, o subir da noitinha é sempre sofrido assim. O silêncio saía de seus guardados”.

Saborear e refletir, para encontrar as raízes, crescer em conhecimento próprio. Se eu conseguir recordar, ganharei calma, se conseguisse religar-me: adivinhar o verdadeiro e real, já havido. E, lá dentro de nós, descobrir que nem sempre somos como gostaríamos, ou como nos apresentamos. A reflexão perfura o marketing que fazemos de nós mesmos, deixando-nos nus, expondo a realidade, onde se agita a maligna astúcia, da porção escura de nós mesmos, que tenta incompreensivelmente enganar-nos ou, pelo menos retardar que perscrutemos qualquer verdade.

Degustar com vagar o pensamento evocado, para aprender a ser feliz, a valorizar o que temos sem perder-nos em sonhos ou quimeras. A gente nunca podia apreciar, direito, mesmo, as coisas bonitas ou boas, que aconteciam. Às vezes, porque sobrevinham depressa e inesperadamente, a gente nem estando arrumado. Ou esperadas, e então, não tinham gosto de tão boas, eram só um arremedado grosseiro. Ou porque as outras coisas, as ruins, prosseguiam também, de lado e do outro, não deixando limpo lugar. Tremenda atualidade nestes nossos tempos onde tudo o que se escuta é queixa, lamúria, reclamação. Difícil é encontrar um elogio otimista, sincero, quase ingênuo, mas que é sábio porque entende que quando nada acontece, há um milagre que não estamos vendo.

O egoísmo fechado em si mesmo, atarefadíssimo –o egoísta está sempre muito ocupado- não abre espaço à solidariedade, á observação carinhosa que se esforça por entender o padecimento alheio: A Mãe e o sofrimento não cabiam de uma vez no espaço de instante(..) O que se consumia de comer era só um quase. E a compaixão que resulta dessa observação: para o pobre os lugares são mais longes.

Somos, como diz o escritor, gente que não presta, que vive em estreita desunião. A verdade é que vivemos de modo incorrigível, distraídos das coisas mais importantes. Da ternura, da serenidade, da paz. Quem sabe ler Guimarães Rosa nos cutuque para buscarmos as prioridades da vida.

47 Ronins: Uma avalanche de virtudes que carecemos!

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47 Ronins. Diretor: Carl Rinsch. Keanu Reeves, Hiroyuki Sanada, Min Tanaka, Kou Shibasaki, Tadanobu Asano, 119 min. (2013)

47ronins-capa     Reconheço que minha sensibilidade é insuficiente para apreciar a fascinante cultura oriental; escapam-me muitos dos detalhes, riquíssimos, que embrulham suas historias. Mesmo assim, aventurei-me com este filme, apesar de ter ouvido comentários não muito favoráveis. “Uma mistura de lenda épica com fantasias fora de lugar: bruxas, criaturas raras, excesso de imaginação. Um filme esquisito.”. Apertei o play e já nos primeiros fotogramas escutei o recado que me seduziu. “No Japão Feudal as províncias eram governadas por um Shogun, e a paz mantida pelos Samurais a qualquer custo. Se um Samurai fracassasse ou decepcionasse o seu senhor, sofria a pior vergonha em toda a comunidade japonesa: tornava-se um Ronin. Saber a história dos 47 Ronins significa saber a história de todo o Japão”.

Não pude menos de lembrar uma outra experiência que vivi há 10 anos, quando assisti O Último Samurai, e me emocionei com as lendas do Japão Feudal, e com a enxurrada de virtudes humanas que ornam a vida dos Samurais. Muitas vezes usei cenas desse filme nas minhas conferências, sempre com alto impacto. Recordo um aluno de medicina que se aproximou de mim no final de uma palestra, quando eu estava recolhendo o meu computador e me disse emocionado: “Professor, eu quero ser um Samurai”.
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Alasdair MacIntyre: Edith Stein. Un prólogo filosófico (1913-1922)

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Alasdair MacIntyre: Edith Stein. Un prólogo filosófico (1913-1922) Ed. Nuevo Inicio. Granada (2008). 328 págs.

edith-stein     O filósofo escocês nos oferece um belo ensaio sobre a trajetória filosófica de Edith Stein (1891- 1942), nos anos que precedem à sua conversão ao catolicismo. Desde o começo deixa claro que não há ruptura no itinerário filosófico de Stein, e que ele se continuará por toda a sua vida. Edith Stein incorpora a filosofia à própria vida, e filosofa desde a perspectiva da sua realidade vital. “Uma vida configurada pela atividade filosófica e guiada pelas suas conclusões é muito diferente à de outro ser humano, similar ao filósofo, mas cuja vida não foi ‘tocada’ pela filosofia. (…) Ela fez com que deliberadamente o seu pensamento filosófico estivesse relacionado com as práticas da vida quotidiana, e utilizou as experiências vindas dessas práticas para formular novos problemas filosóficos e chegar a conclusões.” Esta obra não é uma biografia, mas uma reflexão sobre a ação filosófica de Edith Stein. Não é portanto um livro simples; requer para o seu aproveitamento, uma certa familiaridade com os termos e conceitos da filosofia.

     Nos primeiros capítulos narra-se o encontro com Adolphe Reinach, um dos discípulos de Husserl, o fundador do sistema filosófico conhecido como fenomenologia. Reinach era influenciado por outro dos seus mestres, Theodor Lipps, preocupado com a psicologia e que atentava na compreensão do que denominou “Einfuhlung”, (empatia). Seria justamente a empatia a que captaria a atenção de Stein e daria corpo a sua tese doutoral em filosofia, a primeira defendida por uma mulher na Alemanha.

     Arriscando uma simplificação, poderíamos dizer que a fenomenologia é o método filosófico que nos permite entender as propriedades essenciais dos objetos que se nos apresentam na experiência. Husserl recomendava ser necessário suspender as atitudes e crenças naturais como condição prévia para conseguir uma atenção adequada para os objetos que se apresentam e para refletir sobre eles. Somente através da atenção e da reflexão se pode progredir no olhar fenomenológico. É função da atitude fenomenológica distinguir o essencial do acidental e chegar a uma intuição das essências. Percebemos seres particulares com propriedades que somente podem ser entendidos quando intuímos as essências fundamentais.

     Comenta MacIntyre que o olhar fenomenológico quer ser uma volta as coisas, ao essencial. Existe uma apreensão do todo, da coisa em si; não é apenas um fenômeno que devo ordenar de acordo com as minhas categorias prévias de conhecimento (como afirmava Kant), nem uma enxurrada de impressões desordenadas e desconexas (como assegurava o empirismo de Hume). Husserl dizia que ele escutava uma canção e não as notas separadamente. A reflexão e o olhar fenomenológico se assemelha a quem aprende a ver as cores. O autor acrescenta um exemplo peculiar: Van Gogh comentou com o seu irmão que tinha sido capaz de distinguir 19 tipos diferente de branco nos quadros de Franz Hals.

     Evidentemente, o âmago da discussão filosófica é muito profunda. Mas se tivéssemos de arriscar uma explicação ingênua diríamos, que no fundo, esse olhar fenomenológico quer se aproximar do que as pessoas simples percebem, pessoas essas que obviamente não usam a linguagem fenomenológica. O método fenomenológico confirma filosoficamente o que as pessoas comuns percebem. E dando sequência à arriscada simplificação que nos permite incorporar a filosofia à vida, deve-se reconhecer que o assunto é por demais sugestivo: na vida diária é preciso despir-se de preconceitos (de categorias que temos a priori, como Kant), daquele “eu sei como é que é, este filme eu já vi” para tentar entender o que nos cerca e os seres humanos que conosco convivem.

     Voltamos a Edith Stein. O autor dedica outro espaço da sua obra à génese da percepção fenomenológica da filósofa. Stein serviu como enfermeira na primeira guerra, um modo de servir à pátria, ela que era profundamente prussiana. É nesse trabalho, quando percebe a importância da captar os sentimentos e juízos dos outros, dos próprios pacientes, médicos e enfermeiras. Foi nesse momento quando recebeu um impulso importante para o seu futuro trabalho sobre a empatia, que tinha uma relevância prática.

     É dessa reflexão onde nasce a sua preocupação pelo conhecimento do outro, carro chefe do tema da empatia. Uma caraterística essencial da consciência empática é a consciência dos sentimentos dos outros. A relação que temos com os sentimentos dos outros é análoga à que temos com os nossos próprios sentimentos passados. Posso chegar a reparar o que o outro está sentindo, mas não tenho porque sentir o mesmo que ele, assim como lembrar dos meus sentimentos –mesmo com clareza- não significa que tenho de voltar a senti-los. Um entendimento profundo, compreensão real, mas sem necessidade de incorporá-lo. Eu compreendo perfeitamente o que senti naquela determinada ocasião, mas não tenho porque senti-lo igualmente neste momento atual.

     Vale aqui um comentário deduzido da leitura destes parágrafos extensos e árduos. É preciso cautela para afirmar que “estou me colocando no lugar do outro”. Sim, eu faço isso, mas com os meus padrões (meus sentimentos, minha reatividade, minha compreensão da realidade vital, minha própria historia biográfica) e não com os dele, de modo que não chego a entender verdadeiramente. Não basta colocar-se hipoteticamente no lugar do outro e continuar sendo eu mesmo a vivenciar esse lugar em que me coloco. E preciso estar desprendido também dos próprios padrões para se chegar no conhecimento empático. “Uma fonte de erro é substituir a consciência empática por uma intuição do que o outro pensa ou sente, fazendo uma analogia do que eu sentiria se estivesse no seu lugar. É um modo de considerar o outro como parecido a nós mesmos, de modo injustificado. Somos mesmo diferentes, muito mais diferentes do que gostaríamos para simplificar toda esta questão!”

     Alguns aspectos do conhecimento próprio somente são possíveis através do conhecimento dos outros, e do conhecimento que eles têm de mim. A compreensão de nós mesmos é corrigida através do que aprendemos de nos mesmos em virtude dos outros, de como os outros nos vêm. Trata-se de uma empatia reiterada, que vai trabalhando o conceito de nós mesmos. A empatia em Stein não é um simples golpe de intuição –à primeira vista- mas uma atitude que requer reflexão, voltar uma e outra vez sobre nós mesmos, e sobre os outros, percurso que enriquece o conhecimento próprio e o alheio. Não é um espasmo de conhecimento, mas algo trabalhado.

     MacIntyre recolhe outro tema interessante do pensamento de Edith Stein: o do individuo e da comunidade. Na comunidade os fins dela são os meus próprios, me identifico com ela, fui eu quem se inseriu nela voluntariamente. Na sociedade, agregação mais ampla, tento favorecer os fins dela realizando os meus. A comunidade é mais próxima, mas não pode perder de vista a sociedade. E esta não pode anular as comunidades. Individualidade e associação que se complementam mutuamente. Nem individualismo, nem massificação. Uma sugestiva perspectiva que tem implicações sociológicas e antropológicas.

     Assim Stein afirma que é preciso aprender a distinguir aquilo que os outros esperam de nós e podemos atingir, porque somos capazes de mudar; e aquilo que não está em nosso poder mudar. Distinguir umas coisas das outras nos ajuda a saber quando e onde devemos ser intransigentes. E também nos da uma visão realista das nossas possibilidades de transformação. A capacidade para certa intransigência e o extraordinário realismo sobre si mesma, foram traços permanentes no caráter de Stein. Afirma textualmente o autor: “Stein era ate um grau excepcional, capaz de sentir um grande afeto por alguém e no entanto manter-se alheia à sua influência”. E dá como exemplo o relacionamento de Edith com a sua própria mãe: amava-a profundamente, sem que isso afetasse as suas decisões vitais (foi o caso da sua conversão e da profissão religiosa como Carmelita Descalça).

     Nos capítulos finais, quando o itinerário filosófico se aproxima do tempo da conversão, MacIntyre destaca no pensamento de Stein o tema da alma e dos valores. “É preciso desenvolver a capacidade de reconhecer os valores e de responder a eles; é preciso ter hábitos morais e estéticos determinados….É preciso entender de que modo se assumem os valores como próprios e como se atua em relação a eles; como se é feliz e como se sofre depende do estado da alma. Conhecemos o que a pessoa é quando conhecemos o mundo de valores onde vive”

     Em 1920, Edith Stein depara-se com o “Livro da Vida” de Santa Teresa de Ávila, que lê de corrido numa noite. “Aqui está a verdade” exclama no final. Meses depois recebe o Batismo na Igreja Católica. Tinha 31 anos. Após 11 anos, ingressa no Carmelo de Colônia adotando o nome de Teresa Benedita da Cruz. Em 1942, a perseguição nazista contra os judeus a localiza no Carmelo dos Países Baixos e a leva prisioneira para Auschwitz, onde morre em 1942. Nunca negou a sua raça e o amor ao seu povo judeu, e oferece a sua vida pela conversão dos hebreus. O Papa João Paulo II a canoniza em 1998.

     MacIntyre interrompe o seu ensaio em 1922, quando acaba o prólogo filosófico de Edith Stein. Mas inclui uma anotação que deixa entrever como essa notável intelectual deu sequência ao seu pensamento e produção filosófica. Quem tinha surpreendido o próprio Edmund Husserl quando lhe mostrou ter lido com atenção a sua difícil obra “Investigações Lógicas” (A senhora leu tudo isso? Inteiro? Verdadeiramente notável –exclamou Husserl). Quem foi assistente do mestre, colocando ordem nas suas ideias e no mundo caótico das anotações espalhadas em papeis esparsos –parece que trabalhar com Husserl e tentar ordenar a vida do filósofo não era tarefa para qualquer um), não poderia deixar de exercer o seu ofício –verdadeira vocação- independentemente da sua mudança para o estado clerical.

     Assim o relata a própria Edith: “Num tempo imediatamente anterior à minha conversão cheguei a pensar que levar uma vida religiosa significaria deixar de lado tudo aquilo que fosse secular e viver com o pensamento absorto nas coisas divinas. Aos poucos reparei que neste mundo se nos pede outra coisa e que mesmo na vida contemplativa não há por que cortar a relação com o mundo”. E conclui MacIntyre: “Para quem como Stein esteve dedicada à filosofia é muito difícil não ter pensamentos filosóficos. Conseguiu encontrar o caminho dentro da sua vocação de religiosa e a sua fenomenologia iluminou-se com novos horizontes”.

     E não somente durante a vida mas, atrevo-me a acrescentar, que depois também. Em Madrid, há uma Igreja dedicada a Santa Teresa Benedita da Cruz. Mas ninguém a conhece por esse nome. Tive ocasião de assistir a alguma função litúrgica lá e o comprovei. Quando se me ocorreu perguntar pelo lugar e hora da cerimônia em questão, a resposta foi clara: “Será às 7 da noite, em Edith Stein”.