A Arte Médica (I): a formação e as virtudes do médico

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A medicina é ciência e arte em harmonia proporcional. Ser médico é, antes de tudo, equilíbrio dessas componentes que são a razão da existência da medicina. Este equilíbrio não se dá espontaneamente, mas requer uma reflexão que é o objeto do presente artigo. O autor aborda a importância da formação científica e da competência técnica, especialmente relevante no período de graduação dos futuros médicos que deverão ser “bons médicos células-tronco”. A formação humanística e antropológica deve ser também incorporada o que implica dedicar tempo e reflexão nesse processo para adquirir uma visão personalizada da enfermidade, uma abordagem médica centrada no paciente. Uma ampla exposição sobre as virtudes requeridas no bom médico passa por aspectos como a cultura, a prudência e bom senso, a solidariedade, a dedicação e trabalho esforçado, um espírito aberto, saber hierarquizar e ter modéstia e humildade para combater a vaidade que sempre está à espreita. Algumas considerações éticas – na cobrança de honorários e no relacionamento com os colegas- encerram estas reflexões que convergem no desejo sincero de servir, característica primordial da missão do médico.

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Sergio Rubin & Francesca Ambrogetti: “O Papa Francisco- Conversas com Jorge Bergoglio”

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Sergio Rubin & Francesca Ambrogetti: “O Papa Francisco- Conversas com Jorge Bergoglio”. Ed Verus. Campinas. 2013. 200 pgs

     Este livro sai em edição renovada, estreando título, embora as conversas de ambos os jornalistas com o Cardeal Jorge Mario Bergoglio sejam anteriores à sua eleição como Papa, quando era Arcebispo de Buenos Aires e Cardeal Primaz da Argentina. No entanto, é um livro imprescindível para conhecer a personalidade de quem ocupa agora a Sede Romana. Sua história familiar, a descoberta da sua vocação, o seu pensamento, seus temas favoritos, apontam com acerto para o que será o foco principal do pontificado de Francisco.

     O livro compõe-se de duas partes claras: a primeira nos relata a trajetória vocacional e a atividade sacerdotal de Bergoglio, com as conclusões decorrentes –teologia prática, cristalização das vivências- da sua longa experiência pastoral. A segunda centra-se no pensamento do Cardeal Bergoglio acerca de questões que dizem respeito à Argentina, seu país natal e, naturalmente, sua primeira preocupação quando ocupava a sede cardinalícia em Buenos Aires.

     A família é o ponto de partida imprescindível destas memorias que compartilha com os jornalistas. A família paterna, Piemontesa, daqueles italianos que souberam deixar para trás a sua terra natal, e buscar o futuro. Dizem que por isso, Buenos Aires, que foi construída em grande parte por imigrantes, não olha para o Rio de la Plata, mas para a Pampa, que é o futuro. É a nostalgia, como explica o Cardeal. “Nostalgia, do grego nostos algo, é a ânsia por regressar ao lugar. Tem uma dimensão humana, como a de Ulisses que lhe marca o regresso para a sua pátria. Hoje perdemos a nostalgia como dimensão antropológica. Quando colocamos os anciãos nas casas de repouso, com algumas bolinhas de naftalina no bolso, de alguma maneira adoeceu a dimensão nostálgica, porque encontrar-se com os avôs, é assumir um encontro com o nosso passado”.

     O relato da sua vocação, também aparece com detalhe. Foi um “Dia do Estudante”, em que se dispunha a sair com os amigos, mas decidiu antes visitar a sua paróquia e vendo lá um sacerdote que lhe inspirou confiança resolveu confessar-se. Era já católico praticante, mas aquela confissão foi uma verdadeira primavera da fé. “Foi a surpresa, o estupor de um encontro; reparei que me estavam esperando. Isso é a experiência religiosa: o estupor de encontrar-se com alguém que te está esperando. Desse momento em diante, Deus é o que me ‘primerea’ (corteja, galanteia). Estamos buscando-o, mas ele te busca primeiro. Queremos encontra-lo, mas Ele nos encontra primeiro”.

     O seu pai aceitou a vocação logo de cara; mas a mãe incomodou-se inicialmente. “La vieja se enojó” –afirma Bergoglio, em expressão portenha, que lembra a letra de um tango. Era uma boa mãe italiana que educava os filhos na arte de escutar opera: “Escutávamos do seu lado, os sábados de tarde, as óperas que transmitiam na Rádio do Estado. Fazia-nos sentar à volta do aparelho e nos explicava de que tratava a ópera. Quando ia começar uma ária importante dizia-nos que escutássemos bem, que era uma canção linda. Estar com minha mãe, os três irmãos mais velhos, os sábados, gozando da arte era fantástico”.

     O trabalho, a dignidade humana, e o drama do desemprego são temas que surgem na conversa. “Os desempregados, são como gente que não se sente pessoa. Por mais ajuda que recebam da família e amigos, querem trabalhar, querem ganhar o pão. Em ultima instância, o trabalho unge de dignidade a pessoa. A dignidade não vem da formação familiar, nem da tradição nobre da família, nem mesmo da educação. A dignidade, como tal, vem do trabalho. Comemos o que ganhamos, mantemos nossa família com o que ganhamos. Não importa se é muito ou pouco. Podemos ter uma fortuna, mas se não trabalhamos, a dignidade se desmorona. É como o emigrante que chega sem nada e “faz a América”. Mas, cuidado, porque o filho ou o neto do emigrante pode começar a decadência se não está educado no trabalho. Os imigrantes não toleram os filhos ou netos vagabundos”.

     Um capítulo interessante e divertido é o que intitula: “Quando brincava de ser Tarzan”, onde descreve o lado prático da fé, da esperança, do abandono nas mãos de Deus. Aprender a confiar em Deus mais do que nas nossas capacidades. Uma lembrança serve de pista de decolagem para estas importantes reflexões que conduzem à humildade. Na época era Bispo auxiliar de Buenos Aires e, após acabar o expediente no seu escritório, passou um momento para rezar na igreja, antes de dirigir-se a tomar um trem, pois lhe esperavam para pregar um retiro. Naquele momento, se lhe aproximou um rapaz pedindo para confessar. Bergoglio estava com pressa, pediu ao rapaz que esperasse um pouco, que logo viria outro sacerdote… Mas quando começou a afastar-se teve vergonha, regressou e confessou o rapaz. Saiu atrasado, pensando que tinha perdido o trem. Porém, em chegando à estação, soube que o trem também estava atrasado e pôde pegá-lo. Foi um recado de Deus. “Tinha um espírito de suficiência tremendo. De algum modo pensava: olha só quanta coisa sou capaz de fazer. Era soberba, e não reparava.” A este propósito utiliza a expressão “transitar na paciência”: “É um tema no qual reparei faz anos lendo um livro de um autor italiano com um título muito sugestivo- Teologia do fracasso. É no limite onde se curte a paciência. Às vezes, a vida nos leva não a fazer, mas a padecer, suportando as limitações próprias e alheias. Transitar na paciência é saber que o tempo os amadurece, é deixar que nossa vida se molde pelo tempo que temos de viver”.

     As perguntas sobre a ética obtêm respostas diretas, contundentes. “Tenho pânico aos intelectuais sem talento, e aos estudiosos da ética que não tem bondade. A ética é uma floração da bondade humana. Está enraizada na capacidade de ser bom que a pessoa e a sociedade têm. Faltando isso, o que temos é uma falsa ética, uma ética aparente, na verdade, a hipocrisia da uma vida dupla. A pessoa que se fantasia de ética, no fundo não tem bondade”.

     A História recente da Argentina –com ditaduras e revanchismos- oferece a oportunidade de falar do perdão. Uma proposta inovadora que consiste em mudar os demais na base de perdoar; afogá-los em bondade, que é caminho para sarar o coração dos outros e o próprio. “Há uma frase na bíblia que recomenda dar de comer e de beber ao inimigo, porque isso amontoará um braseiro sobre a sua cabeça. Isso nunca me convenceu. Até que recentemente saiu uma tradução muito boa que ao invés do braseiro fala ‘deste modo, sua cara arderá de vergonha’. Isto indica a estratégia: chegar a uma atitude tão humana, que nos honra, que é a de ter vergonha de algo mau que fizemos. Quem não tem vergonha perdeu o último limite que pode contê-lo na sua vida desregrada: é um sem vergonha”.

     Naturalmente, o tema da pátria –de carregar a pátria, fazer a nossa parte- está também presente nas páginas finais do livro. “Gosto de falar da pátria, não do país, nem da nação. O país é um fato geográfico; a nação um assunto legal, constitucional. Mas a pátria é o que outorga a identidade. Uma pessoa que ama o lugar onde vive não é um “paisista” nem um “nacionalista”, mas é um patriota. Pátria vem de pai, porque é a que recebe a herança dos pais, dos ancestrais, e tem de ser levada adiante”.

     Em resumo: uma coletânea de pensamentos do Cardeal Jorge Mário Bergoglio, hoje Papa Francisco, que certamente terão seu desdobramento –sempre muito prático, como ele gosta- no governo da Igreja Católica nesses tempos que vivemos.

Susanna Tamaro: “Todo Ángel es terrible”

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Susanna Tamaro: “Todo Ángel es terrible”. Seix Barral. Barcelona (2013). 267 pgs.
Comentários da tradução espanhola do original “Ogni Agnelo é tremendo”. Não me consta que exista a tradução em português.

         Acabo este livro, e volto à primeira pagina para lê-lo novamente. Não é atitude frequente nas minhas leituras, mas a surpresa -o impacto, talvez- foi grande, e requeria um bis. Não é mais um livro de Susanna Tamaro, escritora que admiro e acompanho há muito tempo. É a própria Susanna, plasmada nas paginas da obra, de coração aberto, com sinceridade rasgada, agressiva, chocante. Sim, foi isso: o livro chocou-me porque as luzes e sombras –angústias e alegrias- com que salpica as personagens dos seus romances, desta vez se projetam numa única figura: ela mesma! Lembrei-me de um comentário familiar –na minha família, Tamaro é uma autora muito lida- quando alguém comentou que a escritora projeta nas suas obras os golpes da própria vida. Bingo!

         A primeira ideia que me ocorreu ao deparar-me com esta auto revelação foi que a leitura de toda a sua obra –livros conhecidos, magníficos- deveria ser feita partindo da perspectiva que aqui se oferece. Não carece de fundamento esta proposta, visto que a própria autora, no decorrer das páginas, evoca personagens dos seus livros, atrelando-os a figuras reais que se cruzaram na sua vida. E o caso da sua avó Elsa, que inspira outra avó, a questionadora que lida com uma neta rebelde no inesquecível Vá onde teu coração mandar . A avó Elsa foi de importância capital na vida da autora. “Se ela não se tivesse cruzado humildemente no meu caminho, não me teria salvado. Possivelmente ela também não. No mundo das individualidades ninguém se salva. É a misteriosa e gratuita dinâmica do encontro o que nos permite seguir adiante”.

         A descrição da infância –sofrida, não pelas carências materiais, mas pelas omissões afetivas- preenche mais da metade do livro. Desaparições dos seres com os quais conseguia travar alguma ligação afetuosa: o pai, que ia e vinha; uma babá que lhe dedicou muito carinho; o cachorro, os animais. De repente, desapareciam. E a mãe, que foi se transformando para sobreviver ao abandono e às infidelidades crónicas do marido, assumindo uma postura de total indiferença com os filhos. Uma infância rodeada de niilismo, sem sentido. “Na realidade –disse-lhe o pai um dia- estamos todos mortos. Somos apenas pó que se transforma. O vazio nos gera e a ele regressamos. Por isso, é inútil ter sentimentos”.

         As reflexões da mulher madura transpiram a tristeza da menina sensível que não encontrava carinho, mas frieza e vazio, como proteção dos golpes que a vida foi dando aos que tinha em volta, sobre tudo à mãe. “Começava a entender que existia um mundo na minha mente, e outro fora; e que esses dois mundos raramente coincidiam. Gostava dos jogos de meninos porque neles sempre estava presente a morte. E a morte, então, parecia-me a única garantia de verdade”.

         Para mim, que sempre ando envolvido com o tema da educação da afetividade – o desafio de trabalhar sentimentos e emoções para construir uma personalidade equilibrada- o livro foi uma enxurrada de ideias. Ou melhor, uma confirmação de que sem formação da afetividade (afinal, afetividade é o que realmente te afeta!) as insuficiências de caráter são tremendas. “Nessa idade desconhecia o nome dos sentimentos. Somente depois entendi que aquele estado de profundo sofrimento não era outra coisa que compaixão. Compaixão quando vi meu irmão cair cadeira por conta de uma bofetada; compaixão quando via meus pais sentados olhando para o vazio, ou quando, na rua via um ancião ou um doente”. Está claríssimo: não basta sentir, é preciso entender o que se sente, digeri-lo. E para isso, precisamos de alguém que nos ajude e leve da mão.

         A indigestão emotiva levou Susanna a fechar-se e tentar sobreviver. Notável a descrição que faz –verdadeira confissão fenomenológica- de como se transformava numa criança iceberg (sem sentimentos), ou se refugiava na fossa das Marianas (12 km de profundidade, onde há paz e luminosidade), ou se metamorfoseava numa menina de pelúcia, suave, para absorver os golpes. Não os físicos, mas os que lhe chegavam em forma de dúvida, de perguntas –sempre foi uma perguntadora incansável- que nunca tinham resposta. Essa é a verdadeira origem da sua produção literária: “Todos os livros que escrevi são uma profunda viagem ao coração do homem, o continente mais complexo, desconhecido e fascinante que podemos explorar. Todos os meus livros atravessam a escuridão, não por prazer, mas para descobrir o ponto onde, repentinamente, misteriosamente, podem se transformar em luz. Todos os meus livros exploram o território da inquietude e da confusão, porque somente no momento em que somos conscientes de não ter um caminho, começamos de verdade a buscá-lo. Somente quando se aceita a inquietude como princípio básico, penetra-se realmente na humanidade”.

         Lembro-me de um pensamento que me impactou quando li Vá onde teu coração mandar, e que, resumidamente, afirmava que somente o homem tem rosto. O leão tem cara de leão, o antílope cara de antílope, mas apenas o ser humano tem rosto. E nessa individualidade carrega também a historia dos seus antepassados –os bons e os maus- que de algum modo orientam o existir desse novo ser. O tema é recorrente em Tamaro, e aparece nas primeiras páginas desta memória vital que agora nos ocupa: “Somente alguns pais ingênuos acreditam que um recém-nascido chega ao mundo como uma tábula rasa. Ele carrega também a historia dos seus pais, dos seus avós, dos progenitores, que é a historia das suas eleições, das conquistas, dos erros, mesquinharias e grandezas”. Sem determinismos históricos ou genéticos, mas sem cair na tolice de ignorar que, querendo ou não, cada um é também produto do seu ambiente familiar.

         A família é, sem lugar a dúvidas, outro dos temas preferidos da autora. E fala do tema como quem o tem muito experimentado. “Uma família. Que enorme desejo o das crianças de viver esta realidade. Nestes últimos anos foi crescendo a ideia de que uma família não é tão importante para as crianças. Pais, mães, companheiros, meio irmãos, avôs, podem formar um pano de fundo alegre e inócuo. Na realidade, penso que isso é uma mentira enorme que se utiliza para acalmar as consciências. É verdade que as crianças se adaptam a tudo e encontram a maneira de sobreviver, mas no fundo do seu coração somente desejam uma coisa: um pai, uma mãe, que de preferencia se amem, e a ser possível, irmãos”. Um recado oportuno para os tempos que vivemos, onde se quer denominar família qualquer ajuntamento com as variações que o capricho sugere, mesmo repleto de aparente boa vontade.

         Nestas reflexões surgem aspectos de aversão à religião que, confesso, não esperava de Tamaro. Lembranças de convencionalismos que não entendia – e ninguém lhe explicava. E, especialmente, a revolta ao enfrentar-se com um Deus indiferente à dor dos animais, que manda sacrificar o próprio filho. Na verdade é fácil deduzir a quase impossibilidade de ver Deus como pai, quando na própria carne não se experimenta o que venha a ser o amor de um pai, de uma mãe, do conforto do carinho no lar. Por isso, confessa já avançado o livro: “Empreguei grande parte da minha vida em livrar-me do veneno que me foi inoculado”. O veneno da indiferença, da ausência de amor, paralisante, que também lhe fechava as portas ao amor transcendente.

         Nos capítulos finais do livro, Tamaro relata a sua vocação profissional como escritora. Uma vocação que ela nunca teve muito clara e, como alguém lhe apontou numa entrevista, a sua historia seria a de uma mulher que, no fundo, não queria escrever. “Vivi sempre na total incerteza da minha criatividade. O fato de ter publicado vinte livros não muda nada esta condição, que está feita de insegurança, inquietude e perplexidade constante sobre o caminho justo a seguir. Nunca considerei a escritura como um passatempo, como uma profissão. A verdadeira escritura encontra-se em outro lugar, no coração das trevas do homem. A paixão pelas ciências naturais é a raiz profunda da minha escritura. Por trás de cada frase encontra-se a lentidão e a serenidade do entomólogo. Observo e interrogo. Faço perguntas e pergunto à realidade que me cerca”.

         Na verdade, os escritos são a decorrência da sua verdadeira vocação que é o desejo profundo, visceral, de contar historias. Começando pela própria. E contando sua historia encontra o sentido, a reconciliação, o perdão. Emocionante o que anota a respeito do perdão que outorga à mãe: “Deveria odiá-la pelo modo como me tratou, mas escolhi o caminho mais longo e difícil do perdão. O ódio é um veneno do qual é preciso liberar-se, porque nele não há nenhuma possibilidade de que surja a vida. Penso que a minha mãe agradeceu que eu não a julgasse: não sentir-se julgada lhe permitiu abrir um espaço para o amor, para aquilo que gostaria de ter sido e não foi capaz de ser”.

         Reconciliar-se com a mãe, com o pai, com a sua própria vida. E também com Deus, que enxerga como luz, como verdade. Uma verdade que implica numa postura sincera para reconhecer as próprias misérias: “O mal tem uma natureza volátil, ligeira, inodora e invisível, penetra por todas as partes sem esforços e invade as pessoas sem que reparem. Da ausência da contemplação interior nasce o recurso ao bode expiatório. O mal não está em mim mesmo, mas no outro, por isso é preciso persegui-lo e eliminá-lo. Não é esta a gênese de todas as formas de destruição humana? Bastaria com dirigir honestamente o olhar para o nosso interior para advertir que é inútil tentar liquidar o bode expiatório.”

         Eis um sugestivo roteiro para um exame de consciência franco, sem complicações. Sem colocar a culpa nos complexos gerados pelas deficiências de formação, terceirizando a culpabilidade. Neste sentido é muito ilustrativo o que a autora comenta do seu contato com a psicanálise –como forma de fugir à própria responsabilidade moral- e o contundente comentário que James Joyce (amigo da sua família) fez ao seu tio Ettore (escritor que usava o pseudónimo de Italo Svevo), a este respeito: “Se verdadeiramente o necessitamos, conservemos a confissão”.

         Contar histórias é também uma catarse das emoções. E Tamaro, como nos confessa no presente livro, já contou sua história de modos variados, em muitas das suas obras. Agora o faz diretamente, sem personagens fictícios. Uma conquista da escritora que jamais escreveu por encargo, que nunca tem certeza de se escreverá um novo livro, que vive em permanente questionamento. Susanna Tamaro conta histórias para entender o ser humano, para entender-se a ela própria, e nesse processo nos arrasta a todos os que entendemos o questionamento como um motor para viver. Para sentir-nos vivos.

Meus Pais. Uma homenagem

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Minha mãe foi-se à casa do Céu no passado mês de Maio. O modo de dizer não é um eufemismo, mas a forma como sempre denominamos – e colocamos nas estampas comemorativas das pessoas queridas da família-, este momento de separação. Enterramo-la do lado do meu pai, no dia 23; justamente 57 anos depois dessa foto da esquerda: era o seu aniversário de casamento. A foto da direita é também de um dia 23 de Maio, mas 16 anos depois, quando já estávamos todos por aqui, integrando a família.

Nas semanas finais da sua doença, eu tinha a suspeita de que meu pai ajeitaria as coisas para estar, de novo, fisicamente junto a ela nesse dia que na minha família sempre se festejou com grande acontecimento. E assim foi. Lembrei, como por reflexo, um dos filmes preferidos dos meus pais: “Tarde demais para esquecer” (An Affair to Remember). E, naturalmente, a cena onde Cary Grant se encontra com Deborah Kerr no topo do Empire State. Foi um dos filmes que o meu pai comprou quando saíram as primeiras opções de cinema doméstico. E também “Casablanca”, com um grande pôster de Bogart e Bergman, que a minha mãe me deu faz anos: “Tinha-o guardado teu pai. Coloca-o onde queiras.” Está pendurado numa parede da varanda que temos na clínica. Um local destinado às reuniões de equipe e conversas familiares que chamamos a torre.

Tinham a mesma idade. Melhor dizendo, minha mãe era alguns meses mais velha, de Agosto de 1928; meu pai, de Maio de 1929. “Do mesmo ano da crise – disse-me alguma vez- para que não te esqueças. Vai ver que por isso tenho andado sempre lutando com as finanças para levar vocês adiante”. A verdade é que a pesar do ano 29, a empresa que montou, “a única que funcionou”, nossa família, é motivo de continuo agradecimento a Deus. Penso que essa foi a razão que, num dos muitos momentos de crise econômica, fez com que me pai encarrega-se esse papel timbrado, onde

nos colocou –como se fossemos a diretoria – a todos. Na verdade, não havia muita coisa que administrar, a não serem toneladas de carinho, de otimismo, de honestidade. Quando foi recolher o papel encomendado na gráfica, perguntaram-lhe o que era exatamente aquilo. Foi então quando pronunciou a frase que nos é tão conhecida e querida: “Esta é a única empresa das que montei que deu certo”. Os anos e os frutos –que foram agregando acionistas e diretores a essa empresa- confirmam o sucesso do empreendimento.

Os onze netos, do maior com 24 anos, até o menor com 8, quiseram ir despedir-se da avó no velório. “Vai quem quiser, não é obrigatório – disseram seus pais. Foram todos. E o menor me confidenciava depois: “Sabes de uma coisa? Quando a avó estava no hospital eu estava quase pedindo a Deus que a levasse. Porque estando no hospital não poderia vir à minha Primeira Comunhão. Agora estará em primeira fila”. Impressionou-me a sinceridade e o natural interesse de uma criança, saturado de uma perspectiva teológica invejável. E lá estava ele, dois depois, muito sério, fazendo a Primeira Comunhão, certo de que a avó estava presente. Quer dizer, mais motivos, muitos, para continuar agradecendo. Sempre.

Na minha família sempre se viveu uma cultura da transcendência, por chamar de um modo elegante, o que é simplesmente fé em Deus e na eternidade. Não se esconde das crianças, e os adultos o comentam com naturalidade. Meu pai ilustrava este fato sorrindo quando reparava que dávamos excessiva importância a coisas do dia a dia que nos chateavam; por exemplo, quando o Real Madrid perdia: “Não fiqueis desse jeito. O importante é ir ao Céu”. E nós: “Pai, sempre dizes as mesmas coisas. Mas isto é diferente”. Ele continuava: “Vocês já sabem. Para mim, tendo um metro quadrado para que me enterrem, tenho suficiente”. Fazia isso para tirar importância ao assunto, mas vibrava com a alegria humana. No casamento da minha irmã, já estava muito doente, e o sabia. Desfrutou na festa, vendo como todos se divertiam. E aproximando-se de mim, disse-me: “Penso que é importante tudo isto, que as pessoas se divirtam. Isto também é santificar a vida corrente, não te parece?”. Naturalidade, sem solução de continuidade. Depois que faleceu o meu irmão Pedro, quando os menores perdem alguma coisa, sempre se escuta a mesma recomendação: “Pede ao tio Pedro”. E o tio Pedro costuma atender aos pedidos, e as coisas aparecem.

Nestes dias andei pensando como meus pais se articulavam bem. Embora com uma diferença de idade de, casaram-se entre o aniversário do meu pai e o da minha mãe: quer dizer, quando contavam os mesmos anos. Agora minha mãe nos deixa numa data análoga, de modo que fazendo contas (ele, que faleceu em 1997 com 68 anos; ela agora com 84) saem os mesmos anos contados. Meu pai adiantou-se na iniciativa, e nos deixou um 4 de Julho, isto é, no mesmo período de interregno em que apontavam a mesma idade. “Não gosto de colocar salto muito alto – disse-me um dia minha mãe, quando eu era ainda criança- porque não quero parecer mais alta do que o teu pai”. Sempre assim, ao mesmo compasso, com a mesma idade e estatura, como num baile onde se observam alguns casais que pisaram a pista muitas vezes juntos. Igual que os passodobles que lhes vi dançar muitas vezes, pois gostavam de dançar. Sintonia perfeita. E cinema. Quando meu pai faleceu, minha mãe revelou-me: “Sabes o que lhe estava dizendo ao teu pai no velório? O mesmo que Errol Flynn diz à sua mulher antes de entrar em batalha naquele filme do General Custer: ‘Foi um prazer passear com você por esta vida’”.

A dança, tal como o cinema, deve ser coisa de família, porque aos meus irmãos lhes encanta dançar. E lembro-me do meu avô -que adorava Fred Astaire- como um cavaleiro ao modo antigo, nos casamentos a que era convidado, beijando a mão da noiva e, com uma reverência, tirando-a para dançar.

Família, raízes. Olho para os meus irmãos, observo suas qualidades, e adivinho traços do

meu pai em cada um deles, distribuídos em proporções diferentes, com o fatorial de um produto. Meu irmão Pedro, que nos deixou faz cinco anos quando contava 49, lembra-me as formas carinhosas do meu pai, sua doçura. Meu pai tinha um temperamento forte, mas foi se moldando com o tempo; o seu olhar, no final da vida, transparecia doçura, compreensão. Igual aconteceu com o Pedro que, sendo de natureza distraída, transformou-se no homem dos detalhes. Estava atento a todos e a tudo. E sempre trazia na sua mala de viagem surpresas para cada um: recortes de jornal, livros, filmes, canções para os sobrinhos. “Pareces Mary Poppins, tiras tudo da bolsa” – dizia-lhe minha irmã. Pedro passou a maior parte da sua vida fora de Madrid. Minha mãe reclamava que o via pouco, e ele, com um sorriso maroto, respondia-lhe com os versos do poeta Rosales: “Te llevo siempre conmigo. Porque al hombre, como al vino, se le conoce por la madre”. Difícil traduzir isto, mas a ideia se entende: a origem, a videira, a uva, o pouso, é o que forma o vinho e o homem, que carregam sempre a matriz que lhes formou. O resultado era sempre o mesmo: conquistava-a, uma vez e outra.

O produto do meu pai que incarna o meu irmão Juan, fez-me notar um amigo, durante umas complicadas gestões no aeroporto de Barajas (Madrid), para embarcar um carregamento grande e difícil. Sem perder a serenidade, Juan foi resolvendo todos os entraves, sem deixar nunca de sorrir. “Teu irmão –disse o meu amigo- é um verdadeiro solucionador de problemas”. Igual que o meu pai, pensei; e assim é, sempre, até hoje.

Foram também outros amigos os que me revelaram o produto paterno que mais destaca em Santiago. Eles tinham viajado do Brasil a Madrid para trocar ideias acerca de um colégio que estavam iniciando. Santiago levava já muitos anos envolvido com a educação e com os colégios. Meus amigos me contaram depois que o que mais lhes ajudou não foram os conselhos específicos, mas a atitude: “Fez-nos sentar no seu escritório, sorriu e perguntou: Vejamos; o que lhes preocupa?” Uma atitude –pensei- como a do meu pai, que tirava importância ao tema, com serenidade, e ia direto ao assunto. Parece que lhe expuseram também as dificuldades que estavam enfrentando devido ao modelo de colégio que promoviam. Santiago falou com clareza: “Aqui também vêm pessoas que fazem sugestões; dizem que poderíamos fazer isto, ou aquilo. Eu sempre digo o mesmo: aqui vendemos café. Tem gente que quer café com leite, chocolate, cappuccino, e as opões do mercado educacional oferecem tudo isso. Mas aqui, o nosso foco, é café”. Serenidade e franqueza honesta. Outra característica que lembro no meu pai, que não se andava com rodeios. Pão, pão; queijo, queijo. Direto, sem irritar-se, sem deixar de sorrir, com afabilidade.

E a minha irmã Mariluz, “a menina” como a chamávamos quando éramos crianças, por ser a única mulher, a menor. Hoje, mãe de seis filhos, reparo que incorporou do meu pai o saber desfrutar das pequenas coisas, das conquistas domésticas. Pode ser uma comida diferente que as suas filhas preparam, ou um filme que assistem todos em família, ou uma fuga estratégia de algumas horas com o seu marido porque não é possível ausentar-se mais, ou os livros que lê, sem que eu saiba de onde tira o tempo para fazê-lo.

Também em mi mesmo descubro traços do meu pai. Algo que me consola –porque entendo que vou ser assim até o final da vida- e que, ao mesmo tempo, me produz inquietação, pelo risco que implica. São os sonhos, as ideias. Talvez por ser eu o primogênito, o meu pai confidenciava-me os seus planos. Minha mãe dizia: “Pablo, pareces com a moça do leite”, referindo-se à personagem que carrega a bilha com o leite que vai vender; e, embrulhada nos sonhos, tropeça, derruba a vasilha, e lá vão pelo chão o leite e os sonhos. Sendo eu também Pablo, percebo que minha mãe dirigia-se também a mim; e, com o olhar, disse-me isso mesmo muitas vezes, depois, ao longo da minha vida. Os sonhos eram –e são- parte do nosso modo de ser; do meu pai e meu, e certamente minha mãe teria estranhado que os abandonássemos.

Onde entra a minha mãe em todos estes fatores do produto paterno? No equilíbrio, na harmonia, na medida, no detalhe. Por exemplo, as datas dos aniversários que sempre lembrava, e nos recordava a todos. Quando eu passava por Madrid, a primeira coisa que me dizia era sempre a

mesma: “Chamas-te aos teus irmãos? E a tua tia? E a fulaninho?”. E reparando que eu ficava enrolado com as muitas coisas que a gente tem de fazer nessas viagens rápidas –que agora vejo com clareza, não quer dizer que sejam as mais importantes- pegava no telefone, discava e me passava o aparelho. Sem possibilidade de fugir, Obrigado, mãe. Penso que, mesmo com as distrações, herdei dela a facilidade para guardar datas importantes das pessoas que me rodeiam, mesmo de quem está distante.

Minha mãe reunia-nos a todos e, quando meu pai já não estava na terra, continuava fazendo, até o final, até onde lhe chegaram as forças. O dia dos Reis Magos, durante muitos anos, convidava a todos para comer: filhos e netos. Tive a sorte de estar presente num desses momentos, faz dois anos; e vi os presentes aparecer, aqueles que os Reis Magos tinham deixado na casa da tia ou da avó.

Minha mãe agrupava a todos. Sendo filha única –perdeu a sua irmã quando era criança- estava tão unida aos meus tios e tias paternas que pareciam irmãos. Isso me fez notar um primo nestes dias: reuniu-se com os seus irmãos, já que nunca foram cunhados. Congregava amigos, familiares, conhecidos, e buscava novos amigos. Eu sabia de tudo isto, mas nestes dias, vendo a quantidade enorme de pessoas que desfilava para despedir-se dela no velório, comprovei-o com emoção.

E gastava tempo com as pessoas. Apontava-o outro primo: tua mãe é uma mulher que viveu para os outros. Lembrei-me das reuniões nas noites de sábado, com outros casais amigos, muitos deles pais do colégio onde estudávamos e que meus pais promoviam, porque sempre estiveram muito envolvidos com a educação. Esse é, com o cine, com a dança, outro amor de família. A educação, os colégios que os pais devem gerenciar não como clientes, mas como proprietários. As reuniões aconteciam às vezes na minha casa, outras em casa dos amigos, sempre se alternando o local para dividir o trabalho. Em certa ocasião perguntei a minha mãe do que falavam até tarde da noite nessas reuniões. Ela me olhou com um sorriso e afirmou contundentemente: “De vocês, ora; de que outra coisa poderia ser”. Nunca esqueci a resposta. E sempre a comento. A empresa do meu pai, a única que deu certo, tinha uma gerente altamente eficaz que trabalhava nos bastidores.

Meu pai sabia, e me disse um dia em que passei por Madrid, quando já levava mais de uma década morando fora de Espanha. “Você já sabe que eu, sem a tua mãe, não sou nada. Não troco ela por ninguém. Você é o mais velho, e te digo isto claramente, para que lembres.” Fiquei muito serio, não sabia onde ia parar aquilo. Ele, sorrindo, com aquele jeito de quem junta desejos com a realidade, acrescentou: “Penso que vai ser assim. Primeiro a avó, depois o avô (meus avos maternos viviam com eles). Depois tua mãe; e eu, verei de me segurar na mão dela para ir direto ao Céu”. Era uma manhã ensolarada, do outono de Madrid. Lembro perfeitamente o lugar, o momento.

Desse modo nos formava meu pai: fazendo considerações –sonhos, mas também oração- em voz alta. E nunca deixaram de fazê-lo, de nos educar. Quando vieram visitar-me e conhecer o Brasil –eu levava já mais de 20 anos por aqui- também me deu alguns recados. Uma tarde, fui buscá-los no hotel, e cheguei um pouco atrasado. Meu pai, naquela época, já estava doente; falava menos, mas observava tudo. Sentiu que eu andava enrolado com muitos compromissos. “Pablo –disse-me- penso que se te limitasses a fazer o que chega até você passivamente, sem buscar outras coisas, já farias bastante”. Lembro com frequência deste sábio conselho, embora não seja fácil coloca-lo em prática. Mas é uma meta.

Minha mãe também não perdia a oportunidade de me formar, sem importar-se com a idade; com a minha, entenda-se. Certa vez passei por Madrid, caminho de Barcelona, onde me esperavam as sessões finais de um curso de direção de empresa que, nesses momentos, eu estava fazendo. “Você, sendo médico, para que fazer um curso desses?” – perguntou-me. Respondei sem pensar: “Mãe, estou aprendendo a escutar as pessoas”. Ela sorriu e acrescentou: “Parece-me ótimo, belo curso”. Como dizendo: vamos ver se a ficha cai.

A viagem ao Brasil, um ano antes de falecer o meu pai, foi uma comemoração dos 40 anos de casamento, e se me apresenta cheia de lembranças. Muitas delas estão escritas aqui e acolá. As cartas familiares são um tesouro que guardamos –eles e eu- porque revela quem somos na verdade. Já dizia o Cardeal Newman –que escreve mais de 30 mil- que escrever a biografia de alguém supõe fazê-lo através das cartas. Das que recebi dos meus pais extrai muitas vezes a seiva das raízes familiares. Foi numa das últimas, quando meu pai fez-me o seguinte resumo da viagem ao Brasil: “Agora que o vivemos, costumamos dizer que todas as pessoas deveriam poder conhecer o Brasil e seu povo antes de chegar ao Céu, para que a impressão seja mais tolerável, menos traumática”. Para mim é muito mais do que um elogio; é uma confirmação de que o país que me acolheu, há quase 40 anos, é um verdadeiro lar. Um recado do meu pai que se poderia interpretar: “Pablo, isso é o que tens de fazer. Trabalhar no Brasil”. Era o modo de nos entender, lendo as entrelinhas.

Nos últimos meses, quando a doença de minha mãe se agravou, andava eu revisando as provas de um livro que acabo de publicar: Lições de liderança no Cinema. Redigi a dedicatória pensando na minha família que nos educou com o cinema, e destaquei a liderança serena dos meus avôs, do meu irmão Pedro, do meu pai, agora na eternidade.

Quando semanas antes de lançá-lo, o livro chegou às minhas mãos, minha mãe estava vivendo os últimos momentos. Tirei um exemplar do primeiro pacote que chegou e escrevi, em cima da que estava impressa, uma dedicatória a mão: “Para a minha mãe que, com o seu exemplo dedicado, com ternura e alegria, ensinou-me a ver no cinema, tudo o que se anota neste livro. Com todo o carinho do meu coração”. Enviei-o por correio. E também tirei uma fotografia da capa e da dedicatória, e mandei por e-mail aos meus irmãos. Minha mãe viu as fotos, mas o livro chegou quando já entrava em coma. Lembrei, então, da historia do meu pai, querendo segurar a mão da minha mãe, no último momento. E pensei que tinha sido ele quem, agora, estendia a mão, para inclui-la na dedicatória da liderança, repleta de paz, da eternidade. “Eu, sem a tua mãe, não sou nada” – pareceu-me escutar. E como minha mãe não colocava salto alto, deixou-se levar, como sempre, em silêncio, sem fazer barulho.

Meu pai, numa das últimas cartas fez referência aos dizeres do epitáfio que tinham colocado no túmulo dos meus avôs: “Depois dos nomes, acrescentamos ‘Obrigado por tudo’. Não tinha reparado, mas agora vejo que são palavras análogas às que vocês escreveram naquela fotografia que nós fizemos em 1987, todos juntos. É claro: a gratidão é algo que, pensando nos pais, é o primeiro que vem ao coração e à boca”. Como sempre, meu pai, tinha – e tem- a última palavra. Esse é o melhor resumo desta homenagem aos meus pais: “Obrigado, muito obrigado, por tudo”.

Madrid – São Paulo, 2013

Os Miseráveis

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por: Victor Bariani

A realidade que nos cerca tem um grande poder de puxar-nos para baixo,
fazendo com que olhemos apenas para o miserável e sufocante chão. No entanto, às
vezes, a vida pode nos dar um belo presente erguendo-nos para cima para que, mesmo
por uns instantes, olhemos de um ponto de vista mais alto e humano, respirando novos
ares e aproximando-nos das virtudes e dos valores que nos motivam a viver e que, por
muitos momentos, são esquecidos, pois não se encontram no chão que nos habituamos a
olhar. O cinema é uma dessas cordas elevadoras de almas, e essa obra de arte da qual
escrevo é um verdadeiro guindaste.

Através de um belíssimo musical, somos convidados a entender como um
homem pode retribuir a injustiça, a dor e o sofrimento com o perdão, a caridade e o
amor. O que, ao olhar para o chão, seria entendido como loucura é aqui a forma mais
sublime de se chegar a Deus, revolucionando a si mesmo (que me perdoem os céticos,
mas é impossível não falar de espiritualidade e, por conseguinte, de Deus, ao se pincelar
impressões sobre esse filme). Afinal, qual é a melhor maneira de criar uma revolução?
Por meio do convencimento das massas alguns diriam, ou talvez pegando em armas,
diriam outros, ou ainda, fazendo algo incrivelmente revolucionário para suas cabeças,
muitos iriam compartilhar a torto e a direito qualquer “post no facebook” relacionado à
corrupção política. Contudo, existe outro meio de incitar uma revolução, o qual não
envolve nada que se encontre na miséria do chão, mas está dentro de nós: a revolução
do amor.

O intuito máximo de uma revolução é a mudança. Dito isso, é válido o seguinte
questionamento: na obra em questão, quem de fato cumpriu com os objetivos da
revolução? Aqueles que devolveram a dor e a violência na mesma moeda ou aqueles
que tiveram a coragem de estender sua caridade e compaixão ao inimigo? Jean Valjean
não incitou as massas, não defendeu a guerrilha, nem muito menos ficaria navegando
pela internet com a intenção de jogar pragas virtuais em seus inimigos reais. Em lugar
dessas ações compreensíveis, mas ineficazes, ele fez sua parte: influenciou para o bem a
vida das pessoas que conheceu, procurando amá-las incondicionalmente. Por que fez
isso? Pois um dia fizeram isso para ele quando tiveram a oportunidade de pagar no
“olho por olho” um crime desesperado que cometeu. E por que esse alguém retribuiu de
maneira tão nobre a ação tão miserável de Jean? Pois um dia fizeram, possivelmente, o
mesmo para essa pessoa, de modo que chegamos à conclusão que em cada um de nós
existe um gancho que espera que alguma corda prenda nele para nos elevar, para
tornarmos mais humanos.

Muita ilusão e idealismo, inaplicáveis à realidade? A questão é: de qual
realidade estamos falando? Caso essa realidade seja acabar com as guerras e a miséria,
sim, isso é um pensamento muito idealista. Entretanto, nossa realidade é aquilo que nos
cerca, de modo que colocar um sorriso no rosto de uma criança, cumprir o dever com
alegria e simplicidade, ajudar um homem preso em baixo de uma carroça e amar ao
próximo como a ti mesmo são, dentre outros, genuínos atos revolucionários.

Ulrich Schnabel: “Ocio. La felicidad de no hacer nada”

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Ulrich Schnabel: “Ocio. La felicidad de no hacer nada”. Plataforma. Barcelona. (2011). 350pgs

O sugestivo título convidou-me a adquirir a versão espanhola do original em alemão. Mas confesso que fui com muita sede ao pote, em busca de um caminho rápido para esse ócio que se nos escapa, como água entre as mãos, no mundo agitado em que estamos mergulhados. As primeiras páginas –que são as melhores do livro- foram como um cruzado de esquerda para situar-me.

Em livre tradução pode se ler o recado do autor. “Acostumados à sociedade consumista o ócio pode se considerar, erradamente, como mais um bem de consumo. Dai o engano de querer adquirir o ócio com cursos de relaxamento, de autogestão do tempo, ou nas diversas variáveis de ócio express. Mutirões de ócio, que depois não rendem nada”. Como se o ócio fosse um desligar-se, um divorciar-se da própria vida, um fazer de conta durante algumas horas –ou minutos, ou dias- para voltar à dureza habitual. Não existem mutirões de ócio. O ócio não se consegue apertando um botão, clicando um ícone do menu da nossa agenda habitual.

Dai que nos primeiros capítulos se esclareça que o ócio não se limita à inatividade, mas se apresenta de formas diversas: nas conversas, no jogo, no passeio, na prática de música e mesmo no trabalho. São aqueles momentos que têm seu próprio valor, e não se regem pela moderna lógica do aproveitamento e da produtividade. A arte do ócio não tem nada a ver com o número de horas livres, mas com uma atitude. Tem pouco a ver como o tempo, e muito com a perspectiva. Uma atitude que alguém define como “a sintonia entre o meu eu e isso do qual depende a minha vida”. Quando não se tem claro do que depende a vida e de quem somos nós, a busca do ócio está fadada ao fracasso. O ócio é, antes de tudo, uma atitude que leva a recuperar o controle do próprio tempo.

E a proposta não é pouca coisa, pois o que diariamente comprovamos é que “nos esquecemos da nobre arte do ócio. Celebramos a atividade pela atividade, sem nos perguntar se isso é benéfico ou prejudicial para as pessoas; o produto interno bruto costuma ser a marca distintiva da felicidade, e nos seduz o último aparelho digital, que nos abre múltiplas opções de informação, como se a proposta fosse apenas aumentar a quantidade e não a qualidade dessa informação”.

Junto com a atitude de reconquista do controle do próprio tempo, o autor aponta uma segunda característica da arte do ócio. Defender-se das novidades que nos atingem continuamente. “Recobrar o controle do nosso tempo, desfrutar do momento presente, sem deixar-se consumir pela avalanche de oportunidades que acaba nos afogando na variedade de possibilidades. Uma maior multiplicidade de oportunidades nos cansa, porque a continua necessidade de eleger nos consome. Mais do que animar, desmotiva. Quem tem de escolher continuamente entre uma multidão de marcas de iogurte, de seguros, ou de canais de TV não sente aumentada sua liberdade, mas sua ansiedade”.

Lembrei, conforme lia estas linhas, da conhecida afirmação de Ortega y Gasset quando definia a técnica como “o esforço por poupar esforços”. Parece que a técnica, ou pelo menos o modo em que a empregamos, não nos poupa esforço nenhum mas, ao contrário, nos esgota. O afobamento de ter que buscar sempre coisas novas, a última atualidade, a incapacidade para nos contentar com o status quo, e desfrutar do momento presente. Ócio é também a arte de não perseguir continuamente esses desejos compulsivos, mas saber dizer basta para usufruir o tempo e o momento que vivemos. Renunciar a continuas possibilidades alternativas permite sermos senhores do nosso tempo presente.

Esta atitude que poderíamos denominar falta de sobriedade informativa traz consequências sérias, como o autor explica. A multiplicidade da informação –que nos chega por inúmeros canais- leva consigo a interrupção contínua de qualquer tarefa. Torna-se difícil a atenção serena numa atividade. Estudos mostram que é difícil concentrar-se mais do que 11 minutos, pelo ritmo de informação que chega. E mesmo quando não chega, a pessoa já se habituou às interrupções, ficou condicionada. O resultado é que mesmo quando desconectado (por fazer uma experiência, ou por motivos de isolamento topográfico), ele mesmo busca interrupções. É preciso viver a estratégia de Ulisses, amarrar-se ao mastro, para resistir à tentação das sereias da informação, que nos atinge de continuo, sedutoramente.

A virtude não seria viver desconectado, ou postular uma abolição da tecnologia, mas empregar a medida certa, ser senhor do próprio tempo. Quem reclama das interrupções, no fundo, não sabe viver de outro modo; acostumou-se a viver assim, em curiosa e perigosa dependência da informação que goteja a toda hora. Muita informação que se ganha à custa de falta de reflexão, de juízo, de opinião formada: não há tempo de cozinhá-la no forno das próprias reflexões. Um amigo me dizia em certa ocasião que na vida é preciso ter três ou quatro ideias e repeti-las sempre, de modo diferente. Hoje contemplamos multidões que armazenam toneladas de informação, mas incapazes de gestar uma ideia própria.

Não falta no livro a apologia do descanso, da “siesta” tão popular nos países latinos. Um repouso para render, sabendo que muitas das ideias surgem após o descanso. Confirma-se assim a insensatez de querer liquidar todas as pendências, ao invés de dormir sobre as ideias, para poder revisá-las depois, com olhos renovados, serenos. Já dizia alguém sabiamente que o urgente pode esperar, e o muito urgente tem de esperar. A pressa, além de prejudicar a saúde, nos faz insensíveis aos demais, ao tempo dos outros. Vamos pelo mundo nos comunicando virtualmente, mas desprezando os seres reais que requerem atenção, tempo, sorrisos, e não apenas a frieza insípida das redes sociais.

Esperar implica descobrir a arte do ócio. Quando carecemos dela se manifesta no modo como se suportam mal os tempos de espera, os imprevistos, os congestionamentos do trânsito. Não conseguimos estar sem fazer nada, quer dizer, crescendo por dentro. Quando há que apelar continuamente ao estímulo externo –à informação que se procura compulsivamente como dependência química- falta riqueza interior. Em linguagem técnica atual e compreensível: falta-nos bateria, temos de estar sempre ligados na tomada. E, nos falta também, saber olhar e admitir nossas próprias possibilidades, sem comparar-nos com os demais, outra condição imprescindível para crescer na arte do ócio, do controle do tempo, que é o próprio, e não o dos outros.

O autor adverte, com uma ponta de humor, que curiosamente tratamos nosso corpo de maneira mais cuidadosa do que o espírito. Guiamo-nos por regras de nutrição, índice de massa corpórea, curas de toda espécie. Enquanto isso, alimentamos o espírito sem nenhum critério seletivo. Este livro quer ser um vade-mécum nutricionista para o espírito, onde cabe muito bem o conhecido pensamento de Pascal: “todas as desgraças do mundo procedem de não sabermos estar em silêncio no nosso quarto”.

Clara Lejeune- Gaymard: “La dicha de vivir. Jérôme Lejeune, mi padre”

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Clara Lejeune- Gaymard: “La dicha de vivir. Jérôme Lejeune, mi padre”. Rialp. Madrid. 2012.136 pgs

     Chega às minhas mãos este livro pequeno, simples e encantador. Trata-se da tradução espanhola do original francês (La Vie est um bonheur. Jérôme Lejeune, mon pere), e não me consta que exista ainda uma versão em português. A autora, Clara Lejeune-Gaymard, é a caçula das filhas do médico e cientista francês Jérôme Lejeune, descobridor da alteração genética conhecida como Trisomia 21, responsável pela síndrome de Down.

     O livro não é propriamente uma biografia do Professor Lejeune, mas sim um perfil, rápido e singelo, costurado com as lembranças que a filha do cientista tem do seu pai, agora sedimentadas com a perspectiva dos anos. Certamente, a melhor apresentação do livro é a que a editora recolhe na contracapa, entressacada de um relato comovente. “Um popular programa da TV francesa –Dossier de l’ecran- transmite um debate sobre o aborto no caso dos descapacitados detectados antes do nascimento. Os portadores da Trisomia 21 são, na época, os únicos claramente identificáveis. Na manhã seguinte, chega ao consultório um menino com síndrome de Down, que chora e se abraça no pescoço do Professor Lejeune. A mãe da criança explica que o menino assistiu ao programa da noite anterior. Agora chora desconsoladamente e diz a Lejeune: ‘Querem matar-nos. Tens que nos defender. Nós não podemos porque somos débeis’. A partir desse momento –relata a autora- meu pai começara uma luta incansável pela defesa do não nascido. É consciente de tudo o que perderá na batalha, pois sabe, melhor do que ninguém, até onde terá de chegar.”

     O prestígio inegável que Lejeune conquistou como cientista colocou-o sem hesitar ao serviço da vida e da defesa dos descapacitados. Foi um compromisso de por vida, e não se importou com as consequências do desgaste que teve de sofrer por conta dos constantes ataques de ideologias abortistas e eugênicas, travestidas de cientificismo. Sendo um cientista de imensa envergadura, nunca precisou invocar argumentos morais ou religiosos –mesmo sendo um homem de fé- para defender a vida. As evidências científicas que apresentava eram suficientemente contundentes para sustentar sua apologia da vida, e o amparo dos deficientes mentais. “Se a Igreja, Deus não o permita, consentisse no aborto eu deixaria de ser católico” – chegou a afirmar.

     A vida do Professor Lejeune foi uma alternância de luzes e sombras; o brilho das descobertas científicas rodeado das críticas proveniente dos setores que esgrimiam ideologias contrarias à dignidade da pessoa, da qual o nascituro é um representante genuíno. “Nós, seus filhos –conta a autora- contemplamos como se escrevia cada dia esse destino, essa vida cortada em dois. Quando crianças, nosso pai foi um homem honorável. Na adolescência converteu-se num apestado, culpável do delito de opinar”.

     Numa reunião na ONU, abre-se o debate sobre o aborto com os argumentos habituais (mortalidade materna dos abortos clandestinos, o lastro que supõe cuidar de um ser com malformações, evitar sofrimentos psíquicos). Lejeune –somente ele- toma a palavra para referir-se ao carácter único dessa criança cuja vida está em risco e cuja identidade nunca será substituída por outro. E afirma: “Esta instituição para a saúde converteu-se numa instituição para a morte”. Aquela noite escreve à sua mulher dizendo: ‘Hoje perdi o Prêmio Nobel’. Lejeune tinha consciência de que não teria apoio para a verdade científica que tinha descoberto. O fato de ser católico e de desenvolver postulados científicos compatíveis com a fé, faziam com que essa verdade fosse rejeitada.

     As minhas lembranças pessoais do Professor Lejeune não se podem comparar às recordações que a sua filha recolhe neste livro. Até porque se reduzem a uma única ocasião: uma conferência na Faculdade de Medicina da USP, numa noite na década de 80. Não lembro com detalhe do que falou, num inglês perfeitamente compreensível, durante quase duas horas. Recordo sim, que as propostas científicas se combinavam com relatos de tremendo bom senso. Lejeune propunha como desafio da ciência aprender a desligar o cromossomo extra, como se fosse um defeito de fábrica que atrapalha o funcionamento e impede a expressão total da pessoa. E brincava quando dizia que somente os homens se juntam para decidir o que é um ser humano, sendo que ele nunca tinha visto, num zoológico, macacos e outros animais reunirem-se para decidir sobre a sua própria condição.

     De uma coisa lembro com nitidez, pois foi algo que me marcou: o seu sorriso. Era um homem que transmitia paz. Sabia que os seus argumentos, apresentados de modo elegante e cordial, seriam objeto de patrulhamento ideológico. Mas pareceu-me não importar-se com isso. Seguia a sua ciência e a sua consciência, e era feliz. Transitava em outro plano, naquela dimensão do homem que vive em paz com a própria consciência, para quem a opinião alheia é simples detalhe sem importância. Agora, lendo as lembranças da sua filha, vejo que a impressão que tirei daquele encontro não estava errada. O Professor Lejeune incarnava verdadeiramente Le bonheur de vivre, a tremenda felicidade de viver, de colocar a própria vida ao serviço da vida dos outros.

Jose Morales: “Breve Historia del Concilio Vaticano II”

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Jose Morales: “Breve Historia del Concilio Vaticano II”. Rialp. Madrid. 2012. 188 pgs.

     Quando queremos informar-nos sobre um tema importante – as Guerras Mundiais, a História Contemporânea, um Concílio Ecumênico- a tentação é debruçar-se sobre um livro amplo que esgote o assunto. Não costuma ser a melhor estratégia, porque o excesso de informação costuma diluir a visão de conjunto e, no final, somos incapazes de resumir as linhas principais do nosso estudo. Não sabemos dizer, realmente, o que aprendemos. Por isso, gosto de livros como este onde de modo simples –mas com seriedade e profundidade histórica- esboçam-se as linhas principais do tema que queremos conhecer. Depois, demarcados os traços principais, é possível aprofundar.

     O tema aqui é o Concílio Vaticano II, um marco importantíssimo para entender a realidade da Igreja Católica nos dias atuais. O autor adverte que o Vaticano II foi um Concílio de Reforma. E esclarece o que venha a ser esta reforma, termo muitas vezes mal entendido. Copio textualmente: “Nenhuma outra sociedade que vive no tempo caminha na terra com a capacidade de reformar-se que tem a Igreja, que é a comunidade mais crítica e desconforme consigo mesma. Instituições e entes políticos, culturais e militares, nascem, se desenvolvem e, chegado certo momento, desaparecem sem deixar rasto. Não assim a Igreja, que recobra sempre sua juventude e vigor, graças, justamente, às reformas que efetua sobre si mesma pelo impulso criador do Espírito de Deus”

     Convocado pelo Papa João XXIII poucos meses após o início do seu Pontificado, e iniciado poucos meses antes da sua morte, o Vaticano II foi o Concílio de dois Papas: João XXIII que deu a largada, e Paulo VI que teve de desempenhar toda a corrida. Como o autor comenta: João XXIII tinha localizado uma jazida, mas foi dado a Paulo VI explorá-la.

     Foi, de fato, Paulo VI o grande protagonista do Vaticano II. Não o protagonismo de um solista, mas o do maestro da orquestra. Por considerar que levar a termo o Concílio era a missão primordial do seu pontificado, faz sentido o elevado conceito do Papado que tinha Paulo VI. Não por ser ele a desempenhar essa função, mas pela função em si. Comenta-se no livro que certo intelectual manifestou o desejo de escrever uma biografia dele e o Papa respondeu: “Para que? Eu, G.B. Montini não existo. Quem existe é Pedro. Montini não tem nenhum interesse.”

     No marco de um Concílio livre em que se falava da Igreja, Paulo VI adotou um papel diretivo e criativo, com uma intervenção permanente e respeitosa, tanto na forma com no fundo. O Concílio Vaticano II foi um Concílio de equilíbrio. Aquilo que alguns consideravam às vezes ambivalência do Papa, era na realidade uma expressão própria da tensão de situações onde era preciso levar em consideração certos elementos e fatores que, a primeira vista, pareciam difíceis de conciliar. Mesmo no exercício das suas prerrogativas e no modo de fazê-lo, Paulo VI sabia que devia conduzir-se com prudência e cautela.

     Eu que vivi adolescente os anos do chamado pós-concílio, posso dizer que essa prudência de Paulo VI nem sempre era interpretada corretamente. E mais de alguma vez tive de escutar, de fontes razoavelmente confiáveis, comentários que poderiam sugerir omissão ou contemporizar com os problemas ou até com o erro. Com a perspectiva dos anos, como bem aponta este livro, essa atitude surge com peculiar grandeza, própria de quem, esquecido de si mesmo, dedicou os anos de pontificado a fortalecer a Igreja e a recolher no seu seio os homens que buscavam sinceramente a verdade.

     Neste sentido, comentam-se as intervenções diretas do Papa Paulo VI na Lumen Gentium, quando se aborda o tema da Igreja, da colegialidade e da autoridade do Papa. Igualmente no relativo ao amor conjugal, quando ainda faltavam alguns anos para que desse mesmo Papa emanasse a Humanae Vitae.

     Finalmente na Dignitatis Humanae, sobre a liberdade religiosa, Paulo VI interveio pessoalmente para chegar a uma solução positiva e com esperança ecumênica, respeitando o valor da verdade e reconhecendo o direito que todo homem tem de procura-la com liberdade de consciência.

     Um pequeno grande livro, que desenha com propriedade os traços principais do Concílio Vaticano II, cujo espírito preside o caminhar da Igreja Católica nos tempos atuais, e de cujas fontes devem surgir os impulsos de reforma – pessoal e institucional. Acertadamente o autor anota: “Todas as reformas da Igreja, seja qual for a sua envergadura e projeção histórica, são como um êxodo das garras do terreno e carnal, e um movimento para a pátria definitiva”.

Edmund De Waal: “A Lebre com Olhos de Âmbar”

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Edmund De Waal: “A Lebre com Olhos de Âmbar”. Ed Intrínseca. Rio de Janeiro. 2010. 318 pgs.

          Um bom amigo deixou este livro em cima da minha mesa de trabalho. “Leia, creio que vai gostar. Tem muita historia”. Escrevo sobre o que entendi; de fato o melhor do livro é a História, e não as estórias que não são outra coisa que a historia da família do autor. Edmund de Waal, famoso ceramista inglês, toma como desculpa para nos falar da sua família, as peripécias que uma coleção de netsuquês (miniaturas japonesas entalhadas em madeira e marfim) atravessou nos dois últimos séculos até vir parar nas mãos dele.

         Os Ephrussi, judeus emigrados da Rússia (Odessa), distribuem-se em Paris e Viena, desenvolvem negócios com sucesso, dirigem bancos que rendem fortunas, apoiam a construção de uma sociedade na qual se integram perfeitamente. Uma das ramas da família chega a emparentar-se com os Rothschild, sendo fácil perceber a influência econômica e cultural que tiveram em Paris e Viena na segunda metade do século XIX e nos começos do XX, até a primeira guerra mundial.

         É verdade que a cultura –a do autor, e da sua família- é ampla, assim como o contato com as artes, da qual foram mecenas em muitas ocasiões. Os impressionistas, “artistas que aprenderam como recortar a vida em vislumbres e interjeições, e mais do que paisagens formais, tinha-se um fio de trapézio dividindo um quadro, as nucas das mulheres na modista, as colunas da Bolsa de Valores”, eram do círculo social dos Ephrussi, assim como os escritores da época cujos volumes vieram engrossar suas bibliotecas. “Ter uma biblioteca –diz uma das personagens citando Victor Hugo- é como um ato de fé”.

         O livro desperta interesse, sobre tudo, pela interseção que têm com a Historia, e impulsa a aprofundar no estudo desse período. Mas, como em tudo, tenho uma crítica: embora respeite a profunda influencia que a família de De Waal possa ter tido nos destinos de Europa, contar a Historia em função dos membros da família me parece uma pretensão excessiva. Percebe-se até certo ar endógamo – o mesmo que acontecia com a realeza na Europa, quando fala das diversas personagens da família. Quer dizer, um túnel do tempo nas lembranças familiares, onde as miniaturas –entre as que se conta a tal lebre com olhos de âmbar- são simples desculpa, e as personagens históricas aparecem como coadjuvantes. Como álbum de família, aceitável e desculpável. Como livro histórico, adoece de excessiva ambição. Muita areia para o caminhão, mesmo que seja pilotado por Ephrussi e Rothschild.

A Filha do Pai: romantismo e generosidade, num coração sem blindagens

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La fille du puisatier  (2011) Diretor: Daniel Auteuil. Atores :Daniel AuteuilAstrid Bergès-FrisbeyNicolas Duvauchellen, Kad Merad, Sabine Azéma, Jean-Pierre Darroussin, Emilie Cazenave. 107 min.

     Um filme encantador. O único senão é o título, ou melhor, a lamentável tradução do original. A filha do pai é, na verdade, filha de um poceiro, termo que consta no dicionário da língua portuguesa, onde se lê: cavador de poços ou poças. Esse é o ofício de Pascal Amoretti, um viúvo que sustenta a prole de seis filhas, com dignidade e competência. Não sei qual seja o apelo de marketing, se é que tem algum, da tradução desbotada do título do filme, que se não o destrói, pelo menos cria indiferença. Todas as filhas tem um pai, mesmo em tempos de produção independente. Não saber quem é o pai, ou a que se dedica, pode acarretar crises de identidade futura; no caso que nos ocupa, produz desconcerto no espectador que não faz a menor ideia do que vai lhe ser servido nos fotogramas.

     A Filha do Poceiro é uma historia singela, situada no belíssimo cenário da Provence francesa, às portas da segunda guerra mundial. Uma região querida e narrada pelo autor da história, Marcel Pagnol, da academia francesa que, em 1940, filmou a primeira versão do poceiro Amoretti e dos amores das suas filhas. A atual, dirigida e interpretada por Daniel Auteuil, grande expoente do cinema francês, respeita a história de Pagnol, a embrulha em cores vivas, com muito sol, muita luz, e o verde dos campos contrastando com o barro que impregna a roupa do poceiro no seu afazer quotidiano. O filme é uma delicada aquarela, sobre a qual se destaca nitidamente o perfil de cada personagem. Tem o aroma dos Souvenirs d’enfance de Pagnol, aqueles que aparecem na Gloria do meu Pai, e no Castelo da minha mãe. Pagnol também perdeu a mãe na infância e, já escritor consagrado, deixou claro o interesse que tinha pelos caracteres das personagens: “se eu tivesse sido pintor, somente teria pintado retratos”.

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